RAÍZES E FRUTOS DA COMUNIDADE CRISTÃ
Pe. Jose Bortolini
I. INTRODUÇÃO GERAL
A comunidade cristã se reúne para celebrar a fé e cimentar sua união com Cristo, a videira, cujos ramos são todos os que o aceitam e seguem (evangelho). A fé que celebramos tem sua expressão maior no amor entre os membros da comunidade. Seria vã a fé que não levasse ao amor (II leitura). Ela se traduz também no testemunho cristão, levando as pessoas a eliminar desconfiança, frieza e indiferença nas relações interpessoais. Celebrar a fé é solidariedade e compromisso com os perseguidos por causa do testemunho (I leitura).
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (At 9,26-31): O que é ser discípulo de Jesus?
A maior parte do cap. 9 de Atos reproduz acontecimentos referentes à vida de Saulo (Paulo): sua conversão (vv. 1-19a), estada em Damasco, anúncio e fuga (vv. 19b-25) e visita a Jerusalém (vv. 26-30). O texto escolhido para a liturgia deste domingo relata o episódio de Paulo em Jerusalém. Ele já era bem conhecido nessa cidade, pois foi aí que se formou rabino, nutrindo ódio contra os discípulos do Senhor a ponto de se tornar cúmplice do assassínio de Estêvão (cf. At 7,58).
Compreende-se, dessa maneira, por que os cristãos de Jerusalém mantivessem tanta distância e desconfiança em relação a ele, tratando-o com frieza (v. 26). A intervenção de Barnabé em favor do convertido é decisiva: ele o apresenta aos apóstolos. O testemunho de Barnabé em favor de Saulo mostra quais são as características de um discípulo de Jesus (v. 27): a. ter-se encontrado com o Senhor, mudando completamente o rumo da própria vida (tinha visto o Senhor no caminho); b. ter entrado em comunhão com Jesus, escutando-o (o Senhor lhe havia falado); c. ter-se comprometido decisivamente com Jesus (Saulo, na cidade de Damasco, havia pregado publicamente o nome de Jesus). Lucas salienta esse último aspecto, classificando a pregação do convertido de ousada (em grego, parresia. O mesmo termo é empregado a seguir, quando afirma que ele discutia com os judeus de língua grega, v. 29). Sua pregação é ousada porque provoca conflito, envolvendo em primeira pessoa o pregador. Essas três características são suficientes para que ele seja considerado discípulo do Senhor, tendo plena liberdade e comunhão entre os irmãos (v. 28).
Como acontecera em Damasco, onde a pregação acarretara ameaças de morte (vv. 23-24), também em Jerusalém o anúncio de Jesus provocou conflitos, fazendo com que os judeus de língua grega procurassem matá-lo (v. 29). Como reage a comunidade cristã quando um de seus membros é “marcado para morrer”? A atitude básica sugerida pelo texto é a da solidariedade que visa a conservar a vida do evangelizador. Foi assim em Damasco (v. 25), e em Jerusalém (v. 30): os irmãos mandam Saulo para Tarso, sua terra natal.
O v. 31 que fala da paz vivida pelas comunidades na Judéia, Galiléia e Samaria, consolidando-se e crescendo no temor do Senhor e crescendo em número é uma espécie de “retrato da comunidade”. Essa paz não é devida à ausência momentânea de Paulo no cenário da evangelização. Pensar assim seria desvirtuar os Atos dos Apóstolos e o próprio Evangelho de Lucas. Ela também não é devida à pretensa paz do império romano. É, isso sim, a paz que vem do temor do Senhor: é a partir dele, com o auxílio do Espírito Santo, que a comunidade cristã se fortalece e cresce em número, pois o projeto de Deus encontra terreno propício para crescer.
2. Evangelho (Jo 15,1-8): Raízes e frutos da comunidade cristã
O trecho do Evangelho de João proposto para este domingo faz parte dos acontecimentos que marcam a despedida de Jesus durante a Ceia (13,1-17,26). É sob a ótica do testamento que se poderá melhor entender o presente texto. O testamento de Jesus a seus discípulos abraça temas diversos. No caso de Jo 15,1-8, Jesus fala do segredo ou condições para a expansão da comunidade cristã.
Os capítulos 15-17 provavelmente não pertenciam ao corpo primitivo desse evangelho. Foram acrescentados mais tarde, tentando responder a algumas questões da comunidade do Discípulo Amado. Quais seriam? Certamente o tema da “comunidade de iguais”, sem hierarquias (ramos), o tema da missão (produzir frutos) e a presença do Espírito nos conflitos enfrentados pelas comunidades joaninas. O tema “comunidade de irmãos” predomina no texto de hoje.
a. As raízes da comunidade cristã (vv. 1-2)
Recuperando a velha imagem do Antigo Testamento, Jesus se declara a videira verdadeira, cujo agricultor é o Pai (v. 1). No passado, Israel fora comparado à vinha (cf. Jr 2,21; Is 5,1) que não correspondera às expectativas de Javé, que a plantara na esperança de vê-la produzir frutos de direito e justiça. Contudo, os frutos dessa vinha foram a transgressão do direito e a violência (cf. Is 5,7).
Jesus se denomina “a verdadeira videira”, ou seja, só ele é capaz de produzir os frutos que Deus espera, ou se quisermos, só nele é que poderemos realizar o que o Pai anseia. Dessa forma ele se apresenta como a única alternativa para a realização do direito e da justiça. Nesse sentido ele é verdadeiro, isto é, autêntico e fiel: a verdadeira videira.
O Pai, por sua vez, é o agricultor, ou seja, o que põe em ação seu projeto de instaurar na terra o direito e a justiça, a liberdade e a vida para todos. Portanto, as raízes da comunidade cristã, chamada a dar frutos em Cristo, são Jesus e o Pai. Este, como bom agricultor, cuida da videira, com o intuito de fazê-la frutificar. O cuidado do Pai transparece no texto sob a imagem da poda. No início da primavera o viticultor seleciona os melhores ramos, podando-os e eliminando os que não serão produtivos. É a poda seca, quando os ramos ainda não brotaram. Algum tempo depois, quando os novos ramos já se desenvolveram razoavelmente, a ponto de mostrar os cachos ainda pequenos, procede à poda verde, eliminando os brotos que não apresentam frutos. É importante lembrar que sem a poda a videira, dentro de alguns anos, torna-se estéril e acaba morrendo. Podar, portanto, não é fazer a videira sofrer, e sim dar-lhe condições para produzir em abundância. Freqüentemente pensa-se na poda enquanto sofrimento. Jamais passa pela cabeça do agricultor fazer sofrer a videira. A poda é reforço indispensável: sem ela a videira morrerá. Em termos teológicos, a poda não se traduz em provação, e sim em graça.
Nos vv. 1-2 temos, portanto, um Deus extremamente zeloso que cuida da comunidade cristã, enraizada em Cristo, para que produza frutos. Importante notar, ainda, que sem a comunidade (ramos) o projeto do Pai arrisca ficar estéril. Jesus é a videira, mas os frutos de justiça e direito nascem dos ramos, da comunidade que a ele aderiu.
b. Credenciais para ser comunidade cristã (vv. 3-7)
Contrariando a mentalidade do tempo, segundo a qual as pessoas se tornavam puras à custa de ritos de purificação, Jesus garante que a verdadeira pureza da comunidade consiste em acolher a Palavra que ele comunica. É ela quem purifica, liberta e capacita para a missão. Esta é a primeira credencial da comunidade: ter ouvido a Palavra de Jesus: “Vocês já estão limpos por causa da Palavra que eu lhes falei” (v. 3). É a Palavra que põe em contato com Jesus, estabelecendo comunhão e unidade, como a da videira com os ramos.
A segunda credencial é apresentada pelo verbo permanecer, que aparece 7 vezes nos vv. 4-7 (cf. também 1,39). O cimento do permanecer se chama amor. O amor a Jesus, traduzido em união, comunhão e sintonia com seu projeto, caracteriza as pessoas como cristãs: formam uma só coisa com Cristo. O texto não fala de amor, mas sim de permanecer, pois estamos dentro da metáfora videira-ramos. Estes estão unidos à videira e de sua seiva se alimentam. Assim acontece com a comunidade cristã: une-se ao seu fundador e raiz pelo amor. De fato, o que mais desejamos quando amamos alguém? Creio que, basicamente, procuramos duas coisas: 1. Estar sempre com a pessoa amada, sem separações; 2. que essa união não morra, mas dure para sempre, num crescimento constante, procurando o bem do outro.
Nos vv. 5-6 fala-se do risco de esterilidade de toda a comunidade ou de alguns membros. Não basta estar simplesmente unido a Jesus para sempre, sem que isso acarrete a práxis cristã. Mais ainda: quem não produz frutos de justiça e direito não poderá afirmar que está unido a Jesus, como o ramo à videira. Pelo contrário, quem permanece nele produz muito fruto (v. 5); quem não permanece nele (ou seja, é estéril), é jogado fora, seca e será queimado (v. 6). Em outras palavras, quem não luta pelo direito e justiça incorre no julgamento, como aconteceu com a videira de Is 5. Portanto, o critério para sabermos se a comunidade permanece ou não em Cristo são os frutos de justiça e direito que ela produz, os frutos do amor. São eles a identificá-la como comunidade cristã.
Jesus afirma que “se permanecerem em mim, e minhas palavras permanecerem em vocês, peçam o que quiserem, e isto lhes será concedido” (v. 7). Isso nos leva ao cerne do que é rezar: estar em perfeita sintonia com Jesus e seu projeto, fazendo-lhe a vontade, sentindo-o como energia motora na execução do projeto de Deus. Nesse clima, nenhum pedido ficará sem resposta, nenhum esforço será inútil.
c. A glória do Pai (v. 8)
A alegria do agricultor é ver a videira carregada de excelentes frutos. A glória do Pai é uma comunidade comprometida com seu projeto, fortemente unida a Jesus, a videira, raiz da nova sociedade, cujos frutos são a justiça, direito, solidariedade, fraternidade e amor. Isso é parte (ou, talvez, a síntese) do testamento de Jesus à comunidade; essas são as condições para que a comunidade cresça e desenvolva sua missão.
3. II leitura (1Jo 3,18-24): Amar é algo de concreto e sério!
João insiste que o autêntico amor se traduz em obras e na verdade (v. 18. Para uma visão rápida do contexto desta carta, cf. comentário à II leitura do 2º Domingo da Páscoa). Em outras palavras, o amor entre os membros da comunidade, para ser verdadeiro, precisa reproduzir o de Jesus, fiel ao Pai e misericordioso em relação às pessoas, levado às extremas conseqüências. Essa é a prova cabal de pertencermos à verdade de Deus (v. 19).
O amor entre pessoas tende freqüentemente a se desviar de sua real dimensão, mas o importante é conservar aquela sintonia que nos permita ter confiança em Deus, a ponto de sermos por ele ajudados na tarefa de amar.
Quando podemos ter certeza de sermos atendidos ao pedir qualquer coisa? O autor da carta apresenta a condição fundamental: quando guardamos os mandamentos de Deus (v. 22), sintetizados aqui num só: a fé em Jesus, traduzida em relações comunitárias fraternas. Isso demonstra que se não existe amor, também não há fé no nome de Jesus. O amor é, portanto, a expressão visível da fé em Deus. Sem ele não há cristianismo, nem religião, nem fé (vv. 23-24). Quem garante isso é o Espírito de Jesus, que impulsiona a comunidade a viver o mesmo amor de Jesus, que amou até o fim (v. 24).
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
. A I leitura ajuda a comunidade a superar a desconfiança e frieza entre seus membros. O que nos caracteriza hoje, como discípulos do Senhor? O que fazemos por aqueles cristãos que são perseguidos e “marcados para morrer”?
. Refletir com a comunidade sobre os frutos que ela produz: provam ou negam que estamos unidos a Jesus? É possível ser cristão sem lutar pelo direito e pela justiça? (evangelho).
. Os cristãos se reúnem para celebrar a fé. Qual é a expressão dessa fé? “Sem amor não há cristianismo, nem religião, nem fé” (II leitura).