Ninguém disse que seria fácil dar adeus à extrema direita.
Cara leitora, caro leitor,
Talvez você esteja se perguntando como não percebeu que a extrema direita ia fazer bonito no Congresso, com Damares Alves e Marcos Pontes eleitos ao Senado, por exemplo. Ou, inclusive, não ter notado que a diferença de votos entre Lula e Bolsonaro no primeiro turno ficou mais perto do que algumas pesquisas apontaram.
Pode culpar alguns institutos, nossa torcida apressada para varrer o bolsonarismo depois de 686 mil mortes por covid-19 com o atraso da vacina, ou até o otimismo de jornalistas como eu, que cheguei a descrever o ex-juiz Sergio Moro como uma “caricatura” na última coluna e até antecipei um regozijo diante de seu potencial ostracismo.
Nada vai fazer o calendário retroceder e mudar o resultado das eleições que gostaríamos de ter visto, com um Congresso bem mais progressista e, com sorte, o presidente da República de volta à invisibilidade do baixo clero na Câmara dos Deputados.
É preciso encarar que o bolsonarismo, ou a chamada extrema direita, ainda estão aqui, depois deste 2 de outubro, para nos dar mais uma rasteira. Esse grupo extremamente conservador sabe muito bem jogar o jogo e não deixou de ser a força poderosa que sempre existiu.
Para horror de nossa bolha, foram alçados à normalidade pela direita desde 2013, pelos editorialistas do Estadão, os meritocratas e as carolas da vez. E também pela sua bondosa tia, pai, sogro, cunhada, que encaram a vida sob uma ótica fora da nossa política intelectualizada. Não julguemos. Se nesta terça você ainda está chamando eleitor de “burro” e falando que quer sair do Brasil, tem duas oportunidades. Esperar a fossa passar, ou aceitar que o país não está pronto ainda para uma mudança consistente de valores.
Valores, aliás, não se adquirem numa prateleira, nem em matéria de jornal. São consensos de uma sociedade e levam tempo – décadas, por vezes séculos – para serem assimilados. Não seguem o tempo do relógio, das redes sociais.
Imagine isso num país de 212 milhões de habitantes. É fácil falar dos avanços e da estabilidade no Uruguai com uma população 3,4 milhões, onde o aborto e a cannabis são legalizadas. Mas no Brasil de Santa Catarina e seus 5,4 milhões de eleitores, onde bolsonaristas foram eleitos com folga, e da Bahia e seus 11,28 milhões de votantes, que deu farta vantagem ao PT, há muito mais do que distância geográfica e social.
Há pouco tempo até o dia 30, e precisamos estudar as entrelinhas para não deixar a bola passar por baixo das pernas, como em 2018. Nos faltou paciência neste dia 2 para compreender que o bolsonarismo está com o bastão. Bolsonaro teve um gordo orçamento secreto para executar a empreitada deste primeiro turno e ministros militares cacifando sua estratégia eficiente. Conseguiu.
Em São Paulo, Tarcísio de Freitas cresceu sobre Fernando Haddad pelo mesmo princípio que sustentou João Doria no governo do estado em 2018, quando a capital paulista já o rejeitava. O interior leva mais tempo para mudar de opinião.
Nós sabíamos que o bolsonarismo não desapareceria da noite para o dia. O resultado das urnas nos mostrou a forma que ele tomará a partir de 2023 e o longo tempo de que precisaremos para transformá-lo. De tanto que queremos mandá-lo embora, temos dificuldade em reconhecer que nosso adversário é tão forte. Com 99 deputados eleitos pelo PL de Bolsonaro e oito senadores que se somam a outros cinco em exercício, a extrema direita ganhou poder para dar as cartas à luz do dia e já não está tão refém do Centrão. É fato. Foram bolas nas costas.
Mas o Brasil de 57 milhões que votaram em Lula estava atento ao gol que o atual presidente ia chutar, e o pênalti foi defendido. Não é pouco. A ostensiva votação de bolsonaristas país afora está aí para nos lembrar o tamanho do adversário. Não vamos cair na mesma armadilha de subestimá-lo.
O Brasil da resistência não está coordenado. Está fracionado em distintos partidos e instituições. Mas ele se move e fura bloqueios, como a eleição de duas deputadas federais trans, uma em São Paulo, Érika Hilton, e a segunda em Minas Gerais, Duda Salabert, ambas campeãs de votos em seus respectivos estados. Sim, temos o antiministro do Meio Ambiente Ricardo Salles na Câmara e temos também Marina Silva. Ele, auxiliado pela máquina pública do governo federal para ser eleito. Ela, pelo seu legado na causa ambientalista.
A máquina por trás da figura de Bolsonaro está muito bem azeitada. Como esteve a do PT por ao menos 12 anos, antes da debacle de 2016. Como foi a do PSDB entre 1994 e 2002, com Fernando Henrique Cardoso à frente.
Não temos um só problema no Brasil chamado Jair Bolsonaro. Temos 51 milhões de discordantes. Mas, hoje, é tempo de procurar os 1,8 milhão de votos para levar Lula à vitória no segundo turno, depois de seus mais de 57 milhões de votos. Porque o presidente no poder acaba de ganhar fortes cabos eleitorais nos estados e no Congresso. E nossa energia tem de estar nesse objetivo, de cortar uma das cabeças dessa medusa, a mais poderosa no momento.
A frustração com o resultado de domingo nos dificulta reconhecer que tamban andamos para a frente. E não é de hoje. Desde que militamos pela Constituição de 1988. Desde o tempo em que chamamos este Brasil profundo para a arena. Quando ousamos eleger mulheres pretas, como Marielle Franco, quando apoiamos a Comissão da Verdade, criada em 2011. Fomos nós que pedimos ao adversário oculto para que mostrasse a sua cara. Ele rasgou a fantasia e passou a expor sem constrangimento o seu racismo, sua violência, lambendo cano de armas nas redes sociais.
Hoje, não adianta nos prendermos a debates mentais. Lembremos então de onde viemos. A ditadura de 1964 não foi fruto de um golpe meramente militar, mas sim de um golpe civil-militar. De muitos pais e avós desses 51 milhões. É um país que funciona há séculos sob um molde muito bem formatado, em que a sociedade aceita as regras por achar que é o único caminho possível.
Nós ousamos nos rebelar contra isso. E mudar dá trabalho, um projeto minucioso para ajudar a ficha a cair. É assim que a vida real, fora do nosso quarteirão, acontece. Buscar consensos leva um caminhão de tempo. Ainda estamos na metade do caminho para que o Brasil se enxergue de uma vez.
Terrível seria se Bolsonaro tivesse sido reeleito. Seu filho, Eduardo, foi, mas perdeu mais de um milhão de votos de 2018 para 2022. Nomes esdrúxulos não se elegeram, como Sergio Camargo, Fernando Holiday e Fabrício Queiroz. Outros, como Janaína Paschoal ou Joice Hasselmann, evaporaram. O pêndulo ainda está se acomodando. Barbas de molho e altivez para continuar. Afinal, quem disse que seria fácil?