Na intersecção entre transgeneridade e classe social
Luiz Augusto Campos
Raramente os debates públicos em torno das pautas do movimento LGBTT tematizam os problemas específicos dos transgêneros e transexuais. À exceção da portaria do SUS que permite desde 2008 o custeio público da cirurgia de mudança de sexo, e de alguns estados da federação que custeiam a distribuição de hormônios, poucas agências estatais incluem critérios específicos para esse grupo em suas políticas públicas mais amplas. Ainda assim, aquelas que o fazem operam como se os problemas vivenciados por esse grupo fossem restritos às discussões sobre processos clínicos de transgenitalização e outras modificações corporais. Ignoram, portanto, a multidimensionalidade das opressões vividas pelos transgêneros.
Essa orientação política reflete, em parte, o próprio discurso do movimento trans. Na intenção de desconstruir a transfobia, tal movimento busca desfazer associações estereotipadas entre transgeneridade e prostituição. Sobretudo, tenta apresentar a trasngeneridade como uma orientação préssocial e, por vezes, como uma disposição biológica. Trata-se de um debate espinhoso que não pretendemos adentrar aqui. Chamamos apenas a atenção para o fato de que a adoção desse enquadramento para a questão – seja pelo movimento trans, seja pelas agências estatais – faz com que deixemos de perceber a complexa interação entre transgeneridade e opressão de classe.
É por isso que um programa piloto da Prefeitura de São Paulo merece atenção. Criado em 2014 por Fernando Haddad, esse projeto visa distribuir cem bolsas de estudo para transgêneros em situação de prostituição que desejarem retomar seus estudos. Ainda que tal política tenha um alcance bastante limitado (trata-se de um programa experimental) vale notar que ela introduz um olhar renovado sobre os problemas vivenciados por esse grupo social e as melhores estratégias para enfrentá-los. De forma pioneira, o programa leva em conta que tais problemas têm uma dimensão ligada à opressão de classe para além do problema estrito da homofobia ou da transfobia.
É curioso notar como os problemas relacionados à comunidade LGBTT costumam ser tratados de forma isolada das posições de classe, mesmo pelos grupos mais progressistas da militância política e da academia. Num texto caro aos setores mais progressistas da academia brasileira, por exemplo, a cientista política Nancy Fraser defende que a luta por justiça do movimento gay teria mais a ver com demandas por reconhecimento do que com demandas por redistribuição de recursos econômicos. Isso porque a “sexualidade (…) é um modo de diferenciação social cujas raízes não estão na economia política, já que homossexuais distribuem-se ao longo de toda estrutura de classes da sociedade capitalista, não ocupam uma posição particular na divisão do trabalho e não constituem uma classe explorada. (…) Nessa perspectiva, a injustiça sofrida [pelos gays] é basicamente uma questão de reconhecimento” (Fraser, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento?Dilemas da justiça na era pós-socialista, in: Souza, Jessé (org). Democracia Hoje.)
Desse ponto de vista, qualquer política redistributiva que tome como público-alvo algum grupo LGBTT correria o risco de mirar no problema errado. Ora, se as sexualidades marginalizadas pela sociedade demandam basicamente reconhecimento, não haveria motivo para tomá-las como critério para a redistribuição de recursos pelo Estado.
Contudo, esse ponto de vista falha ao não perceber que a construção subjetiva e intersubjetiva das orientações sexuais e de gênero marginais é de inúmeras formas influenciada pela opressão de classes. E isso fica particularmente claro no caso das travestis que se prostituem. Essas não podem ser vistas apenas como indivíduos que “escolheram” se prostituir para ganhar a vida. Muitas vezes, a prostituição surge como única alternativa para esses indivíduos que, ainda na infância, convivem com violências cotidianas no âmbito de famílias paupérrimas e em contextos sociais extremamente homofóbicos e transfóbicos.
A prostituição lhes fornece, assim, não apenas uma fonte de sustento, mas também um novo círculo de convívio, integração e proteção sociais. Não raro, esses círculos fazem emergir novas formas de identificação intersubjetiva entre os jovens recém-chegados e aqueles que neles já se encontram, ou mesmo o conhecimento das técnicas de modificação corporal. Porém, não devemos excluir a possibilidade de que tais modificações sejam, em alguns casos, instiladas pelas próprias demandas da prostituição e do desejo dos clientes por corpos feminilizados ou semifeminilizados. Nesses casos, a opção pela transgeneridade pode sim refletir as imposições da prostituição. Em suma, pobreza, prostituição e orientação sexual se relacionam de modo complexo e plural, formando uma subjetividade que, como todas, emerge também de processos de sujeição e poder.
Se mulheres e negros são exemplos de grupos que encontram dificuldades de ascender no mercado tradicional de trabalho ou na educação formal, travestis dificilmente conseguem adentrar essas esferas de distribuição de capital econômico e simbólico. São, portanto, condenadas à prostituição e a mesma condição de classe da qual se originaram, quando não são rebaixadas de uma origem de classe abastada. Por isso tudo, políticas como aquela em experimentação na cidade de São Paulo recolocam a problemática sob um novo enquadramento. Valeria a pena observar, também, programas semelhantes, aplicados em outros contextos. A Província de Buenos Aires, por exemplo, criou uma reserva de 1% das vagas de seus concursos públicos para transgêneros. Novamente, entende-se que a transfobia se relaciona de modo complexo com as hierarquias de classe e a distribuição de oportunidades na sociedade. Embora todas essas medidas possam ser criticadas em seu alcance e forma, elas ajudam a reposicionar o debate em torno da transgeneridade em sua intersecção com a opressão de classes e, talvez, romper o círculo vicioso que encerra esse grande parte dos transgêneros pobres na prostituição.