China, 60 anos depois: qual o sentido do “socialismo de mercado”
Por Elias Jabbour*
Para a filosofia clássica chinesa, quando uma pessoa chega aos 60 anos recebe um sinal que indica maturidade na vida terrena. Neste sentido, é altamente pertinente a busca por respostas menos superficiais e capazes de ajudar-nos em algo que também buscamos ao trilhar o caminho brasileiro de transição ao socialismo. Serenidade, visão de processo histórico e o tato político como marca daqueles que enxergam no movimento político imediato algo passivo de tratamento científico.
Logo, tendo a transição como uma categoria filosófica a ser cada vez mais degustada e trabalhada, tentarei – nestas curtas linhas – mapear o caminho do sucesso inerente ao “socialismo de mercado” na China. Para tanto faz-se necessário um mínimo apanhado histórico desta realidade tão peculiar.
A teoria e o método da formação social
e a “restauração capitalista” na China
De antemão, apesar de meu completo desapego à esquemas acadêmicos, seria irresponsável de minha parte, iniciar uma discussão desta monta sem antes me deter em algumas considerações de método, além de necessárias polêmicas.
Infelizmente, os cursos de mestrado e doutorado no Brasil, estão cada vez mais nivelados por baixo. O ponto central deste “baixo nível”, além de relações feudais entre orientador e orientando, reside numa crescente necessidade de “especialização” nesta ou naquela área. Não é incomum nos depararmos com mestrandos capazes de nos presentearmos com uma verdadeira aula sobre a “cutícula da unha do pé”, porém quando indagados sobre os mecanismos que leva a formação da “unha inteira” sequer são capazes de utilizar a lógica dialética para tal. Detentores de título de doutorado na Sorbonne, invariavelmente se perdem ao conversar sobre assuntos científicos que vão além do minifúndio da pesquisa encomendada por este ou aquele orientador “renomado”.
No que cerne à crescente “especialização”, sua similar metodológica encontra par na exigência de “periodizações”. Por exemplo, numa banca de pós-graduação qualquer, a crítica que mais se ouve de “catedráticos” é a fragilidade no trabalho de periodizar este ou aquele fenômeno. Outras exigências, por “normas consagradas pela academia”, entre elas o de “fechamento do objeto”, na ponta do processo significa negação da análise das múltiplas determinações do concreto. Eu mesmo cansei de ouvir sugestões deste tipo. Eis o credo positivista/relativista e pós-moderno que destrói, pouco-a-pouco, a capacidade criadora do pesquisador tornando-o um robocop desesperado pelo “título” de mestre ou doutor, uma verdadeira cabeça de planilha. Neste rumo, cada vez mais o exercício da “polêmica” é censurado sob inúmeros pretextos, sob o custo de ser imputado uma, altamente variada, série de adjetivos , quando na verdade a polêmica está para o avanço da ciência e da elaboração da ação política tática, no mesmo grau de importância da eletricidade à geração de energia.
Nunca é demais nos perguntarmos: imaginemos se Marx ou Lênin tivessem que se aferrar a determinadas normas para tocar suas indagações científicas adiante? Será que se Ignácio Rangel fosse um “acadêmico” ele poderia ter se tornado, conforme a história econômica brasileira vem nos demonstrando, o mais completo pensador brasileiro do século XX? Com certeza um possível “orientador” do gigante José Bonifácio o teria mandado revisar o objeto de estudo dele no primeiro texto escrito, por ele, sobre a importância da libertação dos escravos à formação de um mercado interno capaz de ser o arremate inicial a formação de uma potente nação industrial.
Outro fenômeno que nos chama muita atenção com “liga” direta à exigência das “periodizações” está na tomada ipsis literis de esquemas prontos à compreensão “fotográfica” da realidade. Marx e Engels elaboraram um grande “esquema ideal” do funcionamento das diversas sociedades de forma que tornam-se inteligíveis suas possíveis evoluções. Representações de esquemas podem-se tornar modelos que nos capacitem a ter uma visão apurada de diferentes processos históricos. Enfim, além de histórico, o materialismo também é dialético. Logo, os chamados esquemas não devem ser levados ao pé da letra conforme a vida acadêmica tem-me feito perceber.
Pois bem, faço este prólogo para afirmar que, para o caso chinês, a utilização do não-método da “periodização” é o caminho fácil e tranquilo para se constatar que a China pós-Mao rumou no sentido da “restauração capitalista”. Tem sentido, na medida em que se “periodiza” uma conjuntura caracterizada pela reação keynesiana de Reagan, marcada pela “assustadora” proposta de Guerra nas Estrelas à URSS, à imposição – ao Japão – dos leoninos Acordos de Plaza (imposição de mudança da política cambial japonesa) e a crescente incorporação do mundo socialista à lógica dos “ciclos longos de Kondratiev”. Assim, na medida em que o mundo socialista, também, passou a ser encurralado pela crise de 1973 (Leste Europeu), a sedução pela economia de mercado (neste caso, capitalismo) seria um indício da “falência do socialismo”, conforme as imposturas de Gorbatchev (convite à intelectuais norte-americanos a ministrarem, na URSS, palestras sobre as virtudes da economia de mercado) iriam demonstrando e, confirmada, pela “recuperação” norte-americana na década de 1990.
Desarmar as armadilhas da “periodização” é o primeiro passo no, campo do método, àqueles que busquem explicações menos superficiais acerca da atual realidade chinesa. Para tanto, um resgate do marxismo (A Ideologia Alemã) e do leninismo (O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia) é mister a apropriação da teoria e do método da formação social. Não falo da categoria de formação social tão cara à 2º Internacional que reduziu uma ferramenta nodal de análise do problema como problema histórico à simples análise do modo de produção. Reducionismo tão caro à ampla maioria dos intelectuais marxistas brasileiros; viciados num método inconsequente (grande influência exercida em nosso meio por Caio Prado Júnior e Jacob Gorender) e que muitos prejuízos têm-nos causado, impondo empecilhos a uma análise concreta da realidade brasileira, redundando num pobre e infantil esquerdismo (confusão entre leninismo com bolchevismo) que entorpece e incapacita muitos a perceber, por exemplo,o papel não somente tático, mas também estratégico da Questão Nacional.
Retornando à China, a teoria e o método da formação social nos permite distinguir e analisar o desenvolvimento e o “acasalamento” de distintos processos históricos. Logo, pelo menos dois fenômenos necessitam de historicização: 1) a formação e o desenvolvimento da civilização e a nação chinesa e 2) a história do socialismo no século XX, incluindo o papel dado a determinados partidos comunistas de indutor de revoluções industriais, tornando a experiência chinesa (por exemplo), segundo Armen Mamigonian, um típico caso de via prussiana de tipo socialista.
Estado, camponês e pequena produção mercantil na formação chinesa
O ponto de partida à uma metodologia mais consequente no sentido de uma interpretação mais sofisticada da realidade chinesa encontra na relação feita por Marx entre o desenvolvimento das formações geológicas com o processo verificado no âmbito da sociedade conforme sugerido em carta enviada – e datada de 16 de fevereiro de 1881 – pelo mesmo à Vera Zasulich:
“A formação arcaica ou primária de nosso globo contém ela mesma uma série de estratos de diferentes idades, e dos quais um está superposto a outro; a formação arcaica da sociedade nos revela igualmente uma série de tipos diferentes, que formam uns com os outros uma série ascendente, que caracterizam as épocas progressivas.(…).”
Ora, se a lógica que rege o desenvolvimento da sociedade tem em seu DNA muito dos elementos constitutivos das leis naturais, não resta grande margem para dúvidas com relação à alguns fatores relacionados à formação social que diferenciam a China dos últimos 60 aos e, em particular, a partir de 1978. Entre tais fatores de imediato sublinho o espírito empreendedor, do produtor voltado ao mercado (self made man); a grande capacidade do Estado socialista chinês em prover políticas públicas voltadas para 1,3 bilhão de habitantes e o papel do confucionismo e do taoísmo na formação do horizonte moral do homem chinês.
Do ponto de vista da análise envolvendo a dinâmica das classes sociais, o elementar – para um país que ainda conta com quase 70% de sua população vivendo no campo – é compreender o papel e o protagonismo produtivo e político dos camponeses. Assim desembocaremos em uma observação que relacione diretamente o contemporâneo socialismo de mercado chinês com antigo e denominado por Marx como modo de produção asiático.
O modo de produção asiático é algo típico de regiões onde a economia de mercado surgiu de forma precoce, consequências de relações homem x natureza propícia ao rápido desenvolvimento das forças produtivas. O mercado é produto da separação entre a economia doméstica e a economia de troca, gerando um pequeno modo de produção nomeado de pequena produção mercantil. Para termos uma noção, a economia de mercado, na China, surgiu a cerca de 3.500 anos, o que significa perceber (para quem se interessa em entender a ferocidade comercial chinesa) que para os chineses a arte de negociar e comerciar é parte de suas vidas cotidianas a pelo menos três milênios e meio.
A pequena produção mercantil e a compreensão lógica de seu funcionamento é nodal ao domínio dos processos históricos e suas respectivas, e inerentes, transições. Inclusive, e principalmente, a chinesa. É o modo de produção da transição feudalismo-capitalismo, a base pela qual se assenta o processo de industrialização. Em reles palavras, o avanço da superestrutura determina o que costumo de chamar de a transformação da pequena produção mercantil em indústria, conforme ocorreu no vale e o delta do rio Yang tsé (Xangai) e no Planalto Paulista.
O dinamismo de uma sociedade também se relaciona diretamente com este modo de produção. Para nos centrarmos num exemplo, não se explica coerentemente a transição brasileira da Idade Média à Idade Contemporânea entre os anos de 1930 a 1980 sem a transformação da pequena produção mercantil em indústria em nosso país. Assim podemos diferenciar, por exemplo, Ignácio Rangel de Celso Furtado. Se para Furtado e os estruturalistas o Brasil, é um mix de atraso com estagnação, para Rangel o Brasil é uma formação social complexa que redunda na unidade de contrários entre atraso e dinamismo. Assim fica mais suave entender, também, essa convivência entre atraso e dinamismo na China, sob a égide da convivência e uma mesma formação social, de atrasadas e dinâmicas formações econômico-sociais, da economia natural de subsistência à 3º Revolução Industrial. Como veremos mais adiante, eis, uma das excelências da relação entre o surgimento de uma precoce economia de mercado na China, o espírito empreendedor do camponês chinês (pequena produção mercantil) e o sucesso do socialismo de mercado na China.
Sendo a economia de mercado resultado da produção de excedentes agrícolas, logo – condição objetiva – condicionando o surgimento de uma diferenciação social, a necessidade de um Estado, capaz de mediar a diferenciação social e – concomitante – ser dinâmico à arrecadação de impostos e retorno à sua base camponesa sob forma de grandes obras hidráulicas, torna-se algo de grande necessidade. Esse complexo mecanismo de mediação pode ser analisado no fato de há pelo 1.500 anos, na China, o instituto do concurso público já ser método de seleção de quadros ao serviço estatal, mandarinato. Daí, não se tornar um “quebra cabeças” entendermos a capacidade do Estado chinês de planificar cada milímetro de seus mais de nove milhões de km2, do terceiro maior país do mundo.
Abrindo parêntese, a complexidade do modo de produção asiático é perceptível no fato de, diferente da escravidão greco-romana cuja propriedade privada da terra era o centro, a propriedade da terra era estatal e a escravidão se resumia a trabalhos penosos como o das minas. Numa sociedade desse tipo, com possibilidade de ascensão social, o caráter da superestrutura torna-se fluida, dependendo da capacidade do imperador ou rei em atender ou não as demandas camponesas por obras de contenção de desastres naturais. Logo, encontra-se sentido na famosa frase de Confúcio, para quem, “o poder emana dos céus, porém é revogável pelo povo”.
O “revogável pelo povo” é consequência direta da ação da filosofia taoísta sobre a subjetividade camponesa chinesa. Impinge um misto de amor à natureza com rebeldia espontânea. O fato das antigas dinastias chinesas gradativamente irem se tornando ineptas e corruptas à satisfação do bem comum, explica o fato de que todas as dinastias tenham sido derrubadas por revoltas camponesas. Somente a 3º Internacional não percebia esta lógica, tentando impor modelos de revoltas proletárias nas cidades, levando – quase – que o movimento comunista chinês ao colapso em 1928.
Mao Tsé Tung foi o responsável por adaptar o marxismo-leninismo a esta peculiaridade histórica chinesa.
O socialismo e a via prussiana
Como definir as revoluções e experiências socialistas do século XX, inclusive a, em andamento, na China?
Eis um desafio que deveríamos empreender para além da constatação da obviedade inerente ao foto de as mesmas não terem ocorrido nos países desenvolvidos do centro capitalista. Uns, sem relacionarem a categoria filosófica de transição com as complexidades singulares do processo de acumulação de cada formação social, mais superficiais ainda, preferem – a-historicamente – situa-las como continuidade das revoluções burguesas européias.
Sendo que nos países onde ocorreram revoluções de novo tipo, onde a transição feudalismo-capitalismo, ora mal havia se iniciado,ora não havia se realizado, creio que para tanto deveríamos retornar aos clássicos e perceber a dinâmica entre superestrutura e base econômica e as possibilidades de transição feudalismo-capitalismo, teoricamente plausíveis sendo elas: 1) a via junker ou prussiana, onde as pressões internas e externas levaram a classe de senhores feudais a empreenderem reformas de cima a baixo e 2) a chamada via revolucionária (ou via dos produtores ou via americana) para quem os pequenos produtores rurais aos pouco transitam de uma condição subalterna sob o ponto de vista econômico, até atingirem o grau de classe econômica dominante, reivindicando para si o poder político.
Porém, estas formas de transição não podem ser absolutizadas. Existem casos de combinação entre as duas formas, por exemplo o Brasil, onde Vargas (estancieiro, senhor feudal) ao tomar o poder criou as condições institucionais à transformação de pequenos produtores em empresários (Gerdau, Bardella, Weg…). No próprio Japão (Inovação Meiji), o que são os zaibatzus e na Coréia do Sul as chaebols? E na própria China, o que significa esforço, nos últimos anos, de formação de grandes conglomerados estatais prontos para enfrentar a concorrência econômica entre capitalismo e socialismo em âmbito mundial?
O socialismo notabilizado no século XX foi uma “via prussiana”. Antecipo-me àqueles que, justamente, podem colocar as diferenças, como – por exemplo – a falta de reforma agrária na Alemanha ou no Brasil ou mesmo, o caráter de classe do poder. Mas, Ignácio Rangel, com sua flexibilidade intelectual ímpar, sempre nos advertira que o dogmatismo e o preparo destinado somente de análises de “modelos prontos”, tinha na assertiva hegeliana (muito cara a determinados “intelectuais”), de apego ao ardil do conceito, seu pressuposto.
Em verdade, a Alemanha teve Bismarck e o Brasil Getúlio Vargas. Na Rússia houve Kerensky e na China Chiang Kai Chek. Ora, na falta de um Bismarck na Rússia ou na China, a saída à entrada destas nações no século 20 fora Lênin e Mao Tsétung. Ambos, em cujos ombros carregavam o fardo de transformar suas semi-feudais realidades em industriais realidades, ante o abismo que se encontravam diante de si e da alternativa neocolonial.
Abrindo parêntese, sem indústria, economia monetária e mercado de capitais, o socialismo é um sonho somente possível aos amantes da economia natural (de subsistência) do socialismo, acreditando – como os populistas russos, num socialismo gestado a partir do retorno a formas primitivas de agricultura. Daí a NEP soviética, a Nova Democracia e a “Reforma e Abertura” na China. Deng Xiaoping endereçando-se aos seus opositores de “esquerda”, deixava claro que “converseira ideológica” não iria levar a China (nem o Brasil, cá entre nós) a lugar algum, e, se a Inovação Meiji colocou o Japão no rumo de se transformar numa grande potência, os chineses como proletários tinham de ir além, ser melhores.
Muita gente no Brasil insiste em não compreender isso quando o assunto é o nosso caminho forçoso ao socialismo pela via da execução de um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento (NPND). Negam, certos donos do “marxismo-leninismo”, a necessidade de um NPND e desconversam sobre a financeirização, comportando-se assim, na famosa e brilhante constatação de I. Rangel, “como cegos que se guiam por cegos… no rumo do abismo.”
A via prussiana socialista assim como na Alemanha de Bismarck condicionou imensos investimentos am indústria pesada, química e em ciência e tecnologia. Assim como Bismarck consolidou as bases à unificação da Alemanha pelo caminho do intercâmbio comercial de “feudos independentes” e criou condições propícias ao enfrentamento da ameaça externa (militarização),na URSS de Stálin e na China de Mao, esse caminho de transformações econômicas “de cima para baixo” redundou na implementação do que se convencionou chamar (às vezes de forma depreciativa, dependendo do revisionismo de cada um) de modelo soviético de industrialização. Modelo este que capacitou ambos os países à enfrentar ameaças militares externas (2º Guerra Mundial e Guerra da Coréia), lançarem bases à construção de satélites, bombas atômicas e enviar seres-humanos ao espaço.
E que atualmente sustenta um esforço descomunal de resistência norte-coreana às diárias tentativas de intimidação imputadas pelo imperialismo norte-americano, o que torna Kim Jong Il um gigante em comparação a, nas palavras de Armen Mamigonian, “aprendizes de feiticeiro” como Gorbatchev, “patetas” como o albanês Ramiz Alia ou simplesmente “picaretas” como Bóris Iéltsin.
Desenvolvimento e economia de mercado
No que consistiria o apelo de Mao Tsétung (encampado por Deng Xiaoping), de um socialismo com características chinesas?
Especulo que esse caminho se confunde com o programa da Nova Democracia e que da mesma forma que a NEP soviética teve curta vida por conta do recrudescimento do capital internacional contra o “Novo Mundo” que surgira com a abertura, nas palavras de Stálin (sobre o leninismo) da era do imperialismo e das revoluções proletárias.
Poucos sabem, mas o programa executado por Deng Xiaoping e seus competentes sucessores foi vislumbrado por Mao no Programa da Nova Democracia lançado em 1945.Não é a toa que a bandeira chinesa é vermelha com cinco estrelas, sendo a principal delas representando o Partido Comunista e as outras menores, o proletariado, os camponeses e, diga-se de passagem, a pequena burguesia e a burguesia nacional. Eis a diferença entre uma superestrutura de tipo República Popular (formula elaborada por Stálin de um governo, pós-2º Guerra Mundial, abarcando as mais amplas forças antiimperialistas e hegemonizado pelo PC) e outra tipicamente de caráter socialista, como o Vietnã.
A União Soviética chegou em fins dos anos de 1970 com uma economia em franca desaceleração, fruto da decadência do modelo importado por Lênin e Stálin, o fordismo, porém com forças produtivas plenamente desenvolvidas a ponto deste país ter sido um dos precursores da 3º Revolução Industrial (siderurgia). Nada mais superficial, fruto de desconhecimento e um certo “academicismo” do que expor que a URSS havia perdido a corrida tecnológica para os EUA.. Ao caso soviético, também não cabe certas assertivas como a necessidade de câmbio à uma forma intensiva de produção. Segundo Rangel, que visitou a URSS mais de uma dezena de vezes, o problema da URRS estava na necessária redução da jornada de trabalho, fruto de um pleno desenvolvimento das forças produtivas e, concomitante, a isso: a execução de novas e superiores formas de planejamento e não a aplicação de formas mercantis de mediação econômica.
O caso chinês é totalmente diferente. O estágio de desenvolvimento das forças produtivas em 1978 era o mesmo que o da URSS em 1938, porém com uma população de 900 milhões. A ameaça externa condicionou problemas ao desenvolvimento da divisão social do trabalho, com a lógica das comunas auto-suficientes e prontas à defesa interna, independente do que acontecesse no resto do país. Essa lógica tem um lado positivo e outro negativo: positivamente uma menor descentralização industrial (transferências de unidades produtivas do litoral ao interior) possibilitou o desenvolvimento de áreas inteiras no interior do país, inclusive sendo condição nodal ao êxito de formas rurais de industrialização pós-1978; já negativamente, a formação de hinterlândias (ilhas econômicas) impediam a plena conexão regional no país, desde a formação de mercados regionais até a formação de um grande mercado nacional, como hoje vislumbra os atuais herdeiros do “Grande Timoneiro”, dando plena vasão à lógica marxiana, para quem definia na superação da divisão social do trabalho é a grande tarefa histórica do socialismo.
A China de 1978, e ainda hoje, contempla em pequenas distâncias espaciais, grandes distâncias históricas. Por exemplo, ao lado da agricultura de subsistência (economia natural), convivem Empresas de antão e Povoado (ECP`s) com altos índices de produtividade. A alguns quilômetros da zona rural de Pequim, pode-se perceber grupos de pesquisa destinados ao esmiuçamento e desenvolvimento de formas modernas de guerra, como a cyberguerra ou mesmo ocupados o projeto de envio de um chinês à Lua. Ladeando a pequena produção mercantil, grandes conglomerados estatais se preparam à guerra comercial externa. Num mesmo território, várias formações econômico-sociais. Numa mesma formação social diferentes modos de produção interagem em unidade de contrários com o socialismo como formação hegemônica e superior. Em Lênin, eis um dos sentidos e papel histórico do mercado: o elemento mediador entre as diferentes formações sociais. Difícil para muitos compreenderem, mas o mercado é uma categoria histórica e não um modo de produção. Seu fim não se dá por decreto ou pela simples vontade humana. Seu início, meio e fim está condicionado ao surgimento de condições objetivas e subjetivas que já pontuei anteriormente em várias oportunidades.
Historicamente, falar em mercado é sinônimo de comércio de excedentes e de produção voltada ao mercado. É sinônimo em seus estertores de pequena produção mercantil, que na China (como já exposto) tem uma larga história de mais de três milênios. Falar em mercado, em Lênin, também é sinônimo de desenvolvimento. O gigante teórico russo, ao demonstrar que o desenvolvimento em países periféricos deve ter como parâmetro a quantidade de pessoas que passam a gravitar em torno da economia de mercado, criou uma verdadeira teoria do desenvolvimento econômico aos países da periferia do sistema capitalista. Neste sentido, nunca é demais expor que na China existem ainda cerca (segundo estatísticas oficiais) cerca de 100 milhões de camponeses que ainda não conseguiram transitar da economia natural à economia de mercado. Eis uma expressão da etapa primária do socialismo em que, ainda, se encontra a China.
Da cotização destes elementos históricos e conjunturais resulta em 1978, segundo Manuel Castells, a fusão entre o Estado Revolucionário fundado por Mao Tsétung em 1949 com o Estado Desenvolvimentista asiático internalizado por Deng Xiaoping. Tento dar vasão, e consequência, a este raciocínio do pensador espanhol colocando que não se pode falar de Estado Desenvolvimentista de tipo asiático, sem falar em pequena produção mercantil. A Origem das Espécies de Darwin e o materialismo histórico marxista descortinam novas possibilidades ao provarem que a ciência é a arte do estudo e análise de relações. Daí nossa oposição a coisificação e a naturalização, tão cara aos postulados pós-modernistas.
Assim, vaticino que, também, não se pode falar em Estado Desenvolvimentista de tipo asiático sem passar vista no processo de transformação da pequena produção mercantil em indústria. O ano de 1978 marca, na China, o ponto de encontro – o elo da combinação já ocorrida em outras formações sociais – entre a via prussina (no caso chinês, de tipo socialista) com a via revolucionária de transição feudalismo-capitalismo – sendo – e, antessala ao fortalecimento de uma base econômica refletida numa superestrutura decidida em continuar, num tortuoso e assolado de contradições, rumo da edificação socialista.
Agricultura, acumulação e recomposição do pacto de poder de 1949
O grande dilema chinês, desde seus mais remotos tempos até agora, tem sido e se encerrado na questão camponesa. Os camponeses pobres foram a base da revolução de 1949, porém a crescente carga que recaia sobre seus ombros de um modelo de industrialização baseado na extração do excedente de cereais, foi aos poucos minando o que Domenico Losurdo classificou de pacto de poder de 1949.
O impasse camponês, resposta – também – a excessos e voluntarismo em matéria de política econômica, levou o regime a ponto onde ou iniciava-se a inversão da “tesoura” e pról de um modelo de industrialização que trouxesse imediatos benefícios aos camponeses ou o sistema agonizaria, num fim muito mais trágico que o reservado à URSS.
O caminho não poderia ser outro, a não ser, o de “destampar a penela de pressão” e dar vasão total a capacidade empreendedora do camponês médio chinês. Lênin (Agricultura e capitalismo nos Estados Unidos), em resposta àqueles que amplificavam o absurdo para quem o socialismo e a realização pessoal são excludentes, afirmou (mais ou menos nestas palavras) que quem deu fim à concorrência foi os monopólios, e que, portanto, somente o socialismo poderia retomar e utilizar a capacidade empreendedora da pequena produção mercantil. Eis a essência e o motor da acumulação inerentes ao socialismo em etapa inicial.
Na verdade, o primeiro passo fora dado por Mao Tsétung em sua genial investida de reaproximação com os Estados Unidos, abrindo campo e mercado aos produtos chineses. Lênin, por exemplo, sem sucesso não conseguira atingir esse objetivo.
O passo primeiro no sentido de internalizar o Estado Desenvolvimentista de tipo asiático fora o desmonte das comunas e a permissão de comercialização de excedentes agrícolas após a entrega de cotas para o Estado. Assim, o estrangulamento alimentar fora superado e o pacto de poder de 1949 recomposto. A pequena produção mercantil, e por conseguinte, a via revolucionária.
Entre 1979 e 1984, a produção de cereais cresceu mais do que o período entre 1952 e 1975, apesar da queda da área cultivada per capita, como demonstra o quadro abaixo:
FONTE: JABBOUR, Elias M. K.: “China: Desenvolvimento e Socialismo de Mercado: Potência do Século XXI”. Trabalho de Graduação Individual apresentado ao Departamento de Geografia (FFLCH-USP), p. 69, nov./1997.
Uma da formas à compreensão deste sucesso inicial pode ser plausível no fato de no modo de produção asiático, não existir a propriedade privada da terra, sendo ela estatal e passiva de concessão à base camponesa imperial. Essa concessão garantia o suporte inicial ao projetos políticos imperiais, da mesma forma que garantiu a base política que garantiu a resistência – na China – ante os ventos contra-revolucionários do final da década de 1980 no mundo e, também, no país.
Outro dado interessante desta política de liberalização comercial agrícola na China, vem de Fernand Braudel, acerca das diferentes formas de acumulação no Oriente e no Ocidente. Enquanto no Ocidente os processos de acumulação são marcados, quase que necessariamente, pela desapropriação dos meios de produção, no Oriente a acumulação, historicamente, é pautada por um processo de não-desapropriação (como no modo de produção asiático e no “socialismo de mercado” chinês), gerando um mercado sem capitalistas. Ora com isto, volto a repetir que a compreensão do socialismo moderno chinês somente é minimamente apurável nos marcos de uma constante cotização com as características e forma de funcionamento do modo de produção asiático, da mesma forma que as transições brasileiras (inclusive a socialista) ficam ininteligíveis fora do escopo da observação da dinâmica das dualidades elaboradas por I. Rangel.
Ao mesmo tempo em que o país, a partir deste incentivo ao comércio rural, criou condições à formação de um gigantesco mercado interno à produtos manufaturados (logo, não foi o capital estrangeiro responsável nem criador desta máquina desenvolvimentista como muitos incautos tentam demonstrar), o aumento da circulação monetária e a necessidade de transformar depósitos bancários crescentes em liquidez nacional, levou a governança chinesa a tratar de forma mais sofisticada a economia monetária. Parte de um todo – e que envolve desde a execução de políticas econômicas expansionistas a partir de uma política cambial capaz de prover o país de reservas cambiais que, de um lado cumpra papel na importação de máquinas e, por outro, joga papel na necessidade de uma política de juros atraente ao crédito –, a expansão da demanda doméstica criou as condições objetivas à consecução de um amplo e competente sistema de intermediação financeira.
Sistema este iniciado com a formação de quatro bancos estatais de desenvolvimento e na atualidade já tem capilaridade suficiente para sustentar o esforço e as demandas de um acelerado processo de urbanização com crédito fácil que dão suporte a construção de centenas de milhares de quilômetros de metrôs, avenidas e autoestradas. Eis a economia monetária, que se para Lênin foi a maior invenção do capitalismo, para o mesmo Lênin, deveria estar a serviço do socialismo.
Outro fenômeno que se relaciona diretamente com a Revolução de 1949 e a via prussiana socialista é o do espraiamento pelo interior do país das chamadas Empresas de Cantão e Povoado (ECP`s). Muitos são infelizes em desconectar 1978 de 1949 justamente por não colocarem na balança que a sustentação da Reforma e Abertura de Deng Xiaoping estar vinculada com as largas capacidades produtivas instaladas entre 1949 e 1978, e, também, na política de descentralização industrial (auto-suficiência) de Mao Tsétung, permitindo que se reproduzisse na China, uma clivagem de industrialização e urbanização tipicamente rurais.
Responsáveis por cerca de 35% dos produtos exportados pelo país, as ECP`s (empresas rurais de caráter municipal e coletiva) cumpriram (e cumprem) um imenso papel na absorção de excedentes populacionais (com indústrias leves, altamente intensivas em mão-de-obra), além de serem o elemento surpresa do “modelo chinês”. Surpresa, pois num dado momento possibilitou ao país invadir os mercados externos com produtos simples que iam de camisas de seda a brinquedos, atualmente – além de trabalhar nichos de mercado onde não atuam as empresas estatais – cumpre papel, por exemplo, na guerra comercial internacional e até na fabricação de aviões (joint-venture com a Embraer em Harbin), além de serem referências geográficas à construção de novas cidades pelo interior do país.
Assim, baseada na institucionalização da produção voltada ao mercado (pequena produção mercantil), tomou formas as características chinesas de um Desenvolvimentismo de tipo asiático de tendência socializante na China.