A aprovação relâmpago da reforma da Previdência em segundo turno teve, como era previsível, um impacto subjetivo na esquerda. Não fosse o bastante, assistimos a uma ofensiva virulenta de Bolsonaro: defendeu o torturador Ustra e atacou a memória de Fernando Santa Cruz, defendeu o trabalho infantil, os fazendeiros que usam trabalho escravo, os garimpeiros que invadem terras indígenas, a censura e o fim da Ancine, atacou a denúncia que o Inpe faz do desmatamento da Amazônia, e demitiu seu presidente, e muito mais.
Na esquerda ficamos todos enfurecidos. Mas nossa raiva não é a melhor bússola. No debate sobre a tática diante do governo Bolsonaro surgiram duas tentações perigosas. A primeira é o ultimatismo. Ou substitucionismo. A sua palavra de ordem é o Fora Bolsonaro. O argumento é que precisamos dar uma resposta política frontal à questão do poder. A sua forma foi a defesa da iniciativa parlamentar de impeachment.
A justificação é que milhares já estão gritando o Fora Bolsonaro, ou o VTNC (vai tomar no cu) nas manifestações, e ações exemplares de uma vanguarda ativa ampla tendem a contagiar as massas. Trata-se da atração pelo poder estético da “frase revolucionária”. Ou da iniciativa parlamentar de choque que gera uma manchete. É estéril, infelizmente. Nada substitui o processo de experiência prática de milhões que é a única via para o isolamento de Bolsonaro. Não há atalhos retóricos ou parlamentares na luta para criar as condições de derrubada do governo.
O “Abaixo o governo, greve geral”, não importa qual seja a situação política e a relação social e política de forças, é um mantra anarquista. Não é um ultimato de verdade ao governo, porque é um blefe. Neste momento, não é possível mobilizar em escala de milhões para derrubar Bolsonaro. Claro que não é proibido blefar na luta de classes. Mas só é útil blefar quando há alguma possibilidade de enganar os inimigos. Quando não é possível, trata-se de um ultimato às massas.
Este critério é equivocado. A melhor palavra de ordem não é a mais radical. A melhor palavra de ordem é aquela que pode colocar em movimento milhões. Por isso, é muito justa a preparação do dia 13 de agosto em torno da defesa da educação pública.
A segunda é o politicismo eleitoralista. A sua forma é a defesa do republicanismo, ou a subordinação da esquerda ao programa do centro, diante de Bolsonaro, para explorar algumas contradições, com a expectativa de construir Frentes Amplas nas próximas eleições. O seu argumento é que nos aproximando das dissidências do bolsonarismo, estaríamos ampliando a audiência da oposição para além da “bolha” da esquerda.
Não há nada de errado com a unidade na ação, seja com quem for, em torno de uma bandeira democrática reativa a um ataque do governo. Foi muito justa, por exemplo, esta semana, a iniciativa de construir uma delegação pluripartidária para ir recorrer ao STF, diante da decisão de transferência de Lula de Curitiba para Tremembé. O perigo está na “romantização” eleitoralista da unidade na ação. A esquerda não deve renunciar ao seu programa nas próximas eleições municipais. A esquerda não será mais forte defendendo as ideias do centro.
Ambas estas táticas estão erradas. A esquerda não deve aderir agora à tática da ofensiva permanente para tentar derrubar Bolsonaro. Porque não podemos nos colocar objetivos inalcançáveis, neste momento. Chegará a hora da ofensiva, mais cedo do que tarde. Por enquanto, ainda não. Tampouco deve aceitar ser um vagãozinho atrelado à locomotiva dirigida por Rodrigo Maia e ou outros, aguardando o calendário eleitoral.
Estamos em uma situação em que a tática da frente única, ou da acumulação de forças, ou do desgaste, ou leninista-trotskista, ou de guerra de posições, ou gramsciana é a mais adequada. Não podemos disputar com o governo de igual para igual, em luta franca e aberta, porque ainda estamos em condições de inferioridade. Mas não devemos, também, aderir ao quietismo.
Nosso time precisa se posicionar na defensiva, mas em máximo nível de concentração para aproveitar a possibilidade de roubar a bola, ou os erros do governo, e partir para um contra-ataque fulminante. Foi assim que conseguimos realizar as grandes manifestações do 15 de Maio. Será assim que poderemos abrir um caminho para as grandes massas, e inverter a relação de forças.
Estas conclusões decorrem de um procedimento de método. Toda política deve se apoiar em uma análise da situação, caso contrário é puro voluntarismo. Uma análise marxista é uma análise de classe. Isso quer dizer que abraçamos a ideia de que a luta entre as classes é a chave de explicação da vida social. Esta premissa parece simples, mas não é. Não permite concluir que tudo o que acontece na sociedade se explica pelo antagonismo entre capital e trabalho, ou sequer às lutas entre frações de classe. Há muitos outros conflitos, e eles não se resumem à dimensão econômica da luta social. Quer dizer que a luta de classes é a determinação em “última instância”.
Uma análise de conjuntura deve ser entendida como a operação da mente que separa as partes de um todo. A realidade é sempre uma totalidade de contradições. São muitas as camadas que se sobrepõem e interlaçam. Toda análise exige um processo de aproximações sucessivas. Toda análise é, inelutavelmente, parcial. Não é possível a omnisciência diante da história do presente.
Uma análise marxista identifica os conflitos a partir de um ângulo de classe. Isso não significa que pode haver “torcida” na análise. A análise é um procedimento científico sério. Se a situação é mais favorável ou desfavorável, ela não vai ficar melhor ou pior porque reconhecemos a realidade como ela é. Tampouco há análises otimistas ou pessimistas. Isso é retórica. Há somente análises mais certas ou mais erradas.
A análise marxista de uma situação política remete à consideração de fatores objetivos e subjetivos. Tanto na apreciação da relação social de forças, como na aferição da relação política de forças incidem fatores objetivos e subjetivos. Os objetivos são aqueles que remetem à situação das classes. Os subjetivos são aqueles que remetem à posição que as classes ocupam em uma dada situação.
Situação da classe trabalhadora é o lugar econômico-social que ela ocupa, em certo momento. Os salários podem estar se valorizando ou desvalorizando, por exemplo. Posição de classe é o papel político-social, ou seja, a disposição de luta maior ou menor. Situação e posição de classe mantêm uma relação dialética. Não há uma sincronização “perfeita” entre eles. A consciência de classe não aumenta, necessariamente, quando a situação piora ou vice-versa.
As variáveis de avaliação da relação social de forças entre as classes remetem à investigação da estrutura da sociedade. Sobre a situação econômica, podem ser cinco ou mais indicadores dependendo da complexidade maior ou menor do modelo como, por exemplo: (a) dinâmica de recessão, estagnação ou crescimento e evolução da taxa média de lucro; (b) taxas de aferição do desemprego, do endividamento e inadimplência de empresas e famílias, evolução dos salários; (c) variação da inflação sobre educação, saúde, segurança ou previdência privada sobre os setores médios, ou peso maior ou menor dos impostos sobre a renda e consumo; (d) evolução da distribuição funcional e pessoal da renda; (e) evolução da proporção da dívida pública em proporção do PIB.
Ou da situação social: (a) proporção da população em situação em condições de pobreza extrema; (b) proteção da infância e dos idosos, ou acesso aos serviços públicos de educação e saúde, ou ainda aumento ou redução da percepção da insegurança pública, como a evolução da taxa de homicídios; (c) proporção dos aposentados e pensionistas sobre a PEA (População Economicamente Ativa) e evolução de sua rena média; (d) proporção da população imunizada diante de epidemias; (e) acesso à casa própria ou variação dos preços dos aluguéis.
Finalmente, a situação política: (a) unidade maior ou menor da classe dominante em sua relação com o governo, e capacidade maior ou menor da burguesia de acaudilhar a classe média; (b) número de greves e volume de grevistas ou disposição de luta dos trabalhadores; (c) massividade maior ou menor nas manifestações de protestos contra o governo, ou capacidade do campo dos trabalhadores de colocar em movimento outros setores oprimidos; (d) massividade maior ou menor nas manifestações de protestos de apoio ao governo, e composição social destes Atos; (e) evolução da aprovação e desaprovação do governo nas pesquisas de opinião.
As variáveis de análise da relação política de forças são indicadores que nos remetem à investigação da superestrutura da sociedade, ou seja, as organizações, partidos, movimentos e lideranças que fazem a representação dos interesses em conflito, portanto, a dimensão ideológica da luta social. A forma em que se exerce o poder de Estado, ou seja, a estabilidade do regime político-institucional são expressão de maior ou menor força política e social dos partidos que defendem a ordem.
Alguns indicadores, entre outros, são: (a) peso dos partidos políticos nas últimas eleições; (b) força militante ativa nas estruturas da sociedade; (c) peso social de organizações como sindicatos e movimentos sociais entre a massa do povo; (d) audiência da imprensa e mídia de oposição; (e) autoridade e respeito dos líderes políticos.
A caracterização de uma situação decorre da síntese entre a apreciação da relação social e da relação política de forças. Uma incide, permanentemente, sobre a outra. Mas a determinação mais poderosa é sempre estrutural. A relação social de forças é determinante. Sem análises sérias todo o debate de tática é inconsistente.