Metal Diário, São Paulo, 04/07/13.- Os franceses compreenderam, há 45 anos, que fatos aparentemente irrelevantes podem estar na origem de acontecimentos de grandes proporções históricas. Um episódio menor, em Nanterre, foi o estopim de uma das maiores explosões sociais e políticas da segunda metade do século passado – Maio 68. Claro está que não se trata de explicar a amplitude daquela “explosão” pelo “detonador”, ainda que a ligação entre ambos fenômenos seja evidente.
Em São Paulo, há pouco mais de duas semanas, o aumento de 20 centavos da passagem dos ônibus, foi o ponto de partida de uma onda de protestos que se alastrou com rapidez por centenas de cidades brasileiras, no que talvez seja a mais importante mobilização social que o país assistiu desde o fim ditadura militar.
O que, no início, aparecia como uma demanda particular, transformou-se rapidamente em um movimento onde convivem inúmeras – e não raro contraditórias – reivindicações.
Tudo indica que, a despeito da grande transformação econômica e social pela qual o Brasil passou nos dez últimos anos, como conseqüência das reformas implementadas pelos Governos Lula e Dilma Rousseff, o país estava “entediado”, como Pierre Viansson-Ponté acreditava ser o caso da França às vésperas de Maio-68.
O “tédio” brasileiro pode parecer paradoxal. Afinal, o país retomou o crescimento na última década, depois de mais de 20 anos de estancamento. Conseguiu combinar esse crescimento com a retirada da pobreza de mais de 40 milhões de homens e mulheres, sem sacrificar o equilíbrio macroeconômico. Vive-se hoje no Brasil uma situação de virtual pleno emprego, com significativo aumento da renda dos trabalhadores. A vulnerabilidade externa da economia foi enfrentada. De país devedor, o Brasil passou a credor internacional. Mesmo os problemas conjunturais com os quais a economia brasileira está hoje confrontada não abalam as perspectivas de seu desenvolvimento futuro. Pela primeira vez na história, um Governo enfrentou o principal problema de nossa formação social – a desigualdade. Toda essa mudança foi feita – o que não é pouco – com o aprofundamento das liberdades democráticas. A Presidenta Rousseff saudou a “voz das ruas”, condenou os excessos policiais e convocou à Brasília os principais porta-vozes dos movimentos para um debate franco. Não estamos, portanto, diante de movimento contra o autoritarismo.
Mas não há como negar a existência de um mal-estar na sociedade brasileira, que atinge a todas instituições em seus diferentes níveis. Esse sentimento resulta de duas ordens de problemas.
Primeiro, as difíceis condições de vida de milhões de brasileiros, que persistem a despeito dos grandes avanços dos dez últimos anos, sentidas, inclusive, pelos milhões que ascenderam econômica e socialmente. A democratização da educação não foi acompanhada em todo o país com correspondente qualidade. Nos serviços de saúde, convivem setores de excelência com áreas extremamente deficientes. A acelerada urbanização deste país de quase 200 milhões de habitantes pôs em evidência a precariedade do transporte em nossas cidades, onde um trabalhador perde horas de seu dia entre a casa e o trabalho.
A menção a esses três temas, evocados com freqüência nos cartazes das manifestações, é relevante. Aponta para problemas que afetam o cotidiano de milhões de brasileiros.
A segunda razão do mal-estar brasileiro está ligada à esfera política. As mudanças econômicas e sociais dos últimos anos não foram acompanhadas de transformações institucionais necessárias – nos poderes do Estado, nos partidos, mas também nos meios de comunicação, fortemente monopolizados no Brasil.
Os manifestantes clamam por serviços públicos decentes, se insurgem contra a burocracia e a corrupção. Mesmo no “país do futebol”, os gastos na preparação da Copa do Mundo e da Copa das Confederações foram alvo de manifestações. Critica-se sua pouca transparência.
Nos dois pronunciamentos que fez à nação, a Presidenta da República retomou a iniciativa política. Enfatizou a exigência de uma ampla reforma política, além de aprofundamento das atuais políticas públicas. Tal como em outras partes do mundo, inclusive na América do Sul, as instituições se revelaram acanhadas e inadequadas frente à ampliação do espaço público e à entrada nele de novos sujeitos políticos.
Uma reforma política é essencial, sobretudo, no combate à corrupção que, como normalmente acontece na história, é apontado, por alguns setores, como o mais importante problema a resolver. Essa posição centra suas críticas nas instituições indistintamente e nos partidos políticos, em particular.
Sabe-se que o ataque às instituições, especialmente aos partidos que estão em sua base, refletem duas tendências.
A primeira desemboca em uma regressão autoritária, articulada em torno de um “homem providencial”, capaz de dar curso a uma contrarreforma econômica e social.
Outra, de caráter democrático, que prega uma profunda e urgente reforma das instituições, inclusive dos partidos. Isso exige hoje mudanças na lei eleitoral, que corrijam as graves distorções dos mecanismos de representação, adotando um financiamento público dos partidos, para eliminar a influência do poder econômico nas eleições, mas também capaz de construir mecanismos que fortaleçam sua consistência programática e, ao mesmo tempo, de abrir espaço para maior e mais decisiva participação da sociedade na política. Ganham importância especial a multiplicidade de mecanismos de controle das políticas públicas pela sociedade, instrumentos como o “recall” dos eleitos, as consultas populares.
Não é só a economia que vive uma profunda crise no mundo de hoje. Os modelos políticos democráticos também estão confrontados com o desafio da mudança.
O Partido dos Trabalhadores – que esteve à frente das importantes transformações pelas quais o Brasil passou nos últimos – não está infenso a essa necessidade de mudança. Nascido há 33 anos das lutas sociais e comprometido com todos aqueles que viviam à margem da política no país, cabe-lhe hoje a necessidade de renovar-se e reencontrar aquele sentimento generoso que esteve em sua origem.