A estúpida lentidão da história Valerio Arcady

Mais uma vez há uma controvérsia séria sobre qual é o maior problema do mundo. A extrema direita, nos países centrais foca na defesa da “civilização ocidental” ou na imigração, e nos periféricos na corrupção ou na criminalidade. Liberais defendem a globalização, ou seja, a livre circulação de capitais e mercadorias. Para muitos o aquecimento global é a pauta. Outros priorizam o perigo da ofensiva de Trump contra a China, ou a iminência de uma nova crise econômica, ou a crise das democracias. Para muitos outros é a pobreza. Alguns, um pouco mais lúcidos, defendem a luta contra desigualdade social.

A ideia é que se não há prioridade, tudo é prioritário, logo não há prioridades. Parece um argumento razoável, mas não é. A premissa oculta é que o mundo é como é, e vai continuar sendo. A proposta é regular, gradualmente, o capitalismo. Ideia, argumento, premissa e proposta são falsos. Escondem a conclusão ideológica: o capitalismo seria imortal, perpétuo, insuperável, invencível.

Não são poucos, inclusive, na esquerda moderada, que argumentam, ingenuamente, que a luta contra a pobreza deve ser a prioridade absoluta. A oposição do combate pela erradicação da pobreza à luta contra a desigualdade social é, todavia, mais do que um erro.

Porque o fim da miséria, ou o controle das emissões de gases do efeito estufa, ou a luta pelo desarmamento mundial, ou a resposta ao perigo da estagnação econômica e o desemprego, ou a paz mundial, ou qualquer outra, não são um problema “técnico”. Claro que exigem soluções técnicas.

Mas é uma ilusão perigosa pensar que a união de líderes razoáveis e de boa vontade, sejam de esquerda ou de direita, em torno de um plano perfeito, primoroso, magistral, seria a solução. Não há plano consensual, indolor, técnico que possa reformar o capitalismo no início do século XXI. A época das reformas ficou para trás. O capitalismo já esgotou as possibilidades históricas de autorregulação, e entrou na época de decadência.

Só a “estúpida lentidão” da história explica a sua permanência. A lentidão se explica por dois fatores. O primeiro é que nunca existiu na história uma classe dominante tão poderosa como os capitalistas. O segundo é a imaturidade objetiva e subjetiva dos sujeitos sociais que têm interesses anticapitalistas: os trabalhadores e os oprimidos. Uma classe explorada, economicamente, oprimida, socialmente, e dominada, politicamente, vive uma tríplice condição de repressão. Não parece difícil de compreender que não seria nem simples, nem fácil. A estupidez é uma forma de qualificar a irracionalidade cruel do processo.

Os dramas contemporâneos são questões centrais de estratégia política. A questão é quem controla o poder, ao serviço de que interesses e contra quais interesses. Na estratégia duas questões são essenciais. Saber contra quem lutamos, e quais são as forças sociais que devemos mobilizar para vencer. Não são os pobres os responsáveis pela pobreza, mas o capitalismo. Não são os desempregados, supostamente, pessoas despreparadas para as necessidades do mercado, os responsáveis pelo seu desemprego, mas o capitalismo. Não são os motoristas de automóvel os responsáveis pelo aquecimento global, assim como não são os que tomam banho os responsáveis pela escassez crescente de água potável. Só uma estratégia socialista, portanto, revolucionária, pode proteger a civilização da fúria da ganância e avareza capitalista.

Se há tanta pobreza no Brasil e no mundo sob o capitalismo, é porque ela é funcional. Duzentos anos nos separam do início da revolução industrial. Se o capitalismo fosse capaz de acabar com a pobreza, já teve muito tempo para fazê-lo. Ser funcional significa que não é possível a concentração de riqueza, sem aumento da pobreza e da desigualdade.

Os defensores do capitalismo têm dois argumentos. O primeiro é que a desigualdade social não é um mal em si. Ao contrário, ela seria natural, portanto, irreversível. Mais importante, todavia, ela seria um incentivo para o desenvolvimento econômico. O segundo é que será somente uma questão de mais tempo para diminuir a pobreza. Enquanto isso, ela pode ser mitigada através de políticas focadas de distribuição de renda, e aumento da escolaridade da nova geração.

Ambos estes argumentos são ideológicos e falsos. A pobreza extrema de uma parcela da sociedade é inexplicável, se desconhecermos a extrema riqueza do número crescente de bilionários. Ela é menor nos países centrais do que nos periféricos porque a ordem mundial é imperialista.

Mas mesmo nos países centrais ela não para de crescer nos últimos trinta anos. Políticas públicas emergenciais de distribuição de renda são, exatamente, isso: emergenciais. Só o direito ao trabalho oferece uma saída digna, mas o capitalismo do século XXI entende o pleno emprego como um problema. Ele altera a relação social de forças, porque estimula a indisciplina reivindicativa sindical dos trabalhadores, pressiona a elevação dos salários, e causa desestabilização política.

Em segundo lugar a desigualdade social não é nem natural, e nem irreversível. Ela é uma consequência do capitalismo. Ser de esquerda não é defender que as pessoas são iguais. Não são. Mas devemos ter direitos iguais. Se somos diferentes, por quê? Sim, temos habilidades diferentes. O que prevalece na condição humana é, felizmente, a diversidade. Temos talentos variados que se complementam, e se compensam. Isso é enriquecedor.

O mais importante, contudo, é compreender que as diferenças sociais que fragmentam a sociedade em classes não repousam nas diferentes capacidades dos indivíduos. Essa idealização da meritocracia é um veneno ideológico para tentar justificar o absurdo. Os talentos estão distribuídos em todas as classes sociais. Mas como os filhos da maioria do povo têm menos oportunidades, milhares e milhares de jovens com aptidões excepcionais têm os destinos de suas vidas, tragicamente, sacrificadas. A aposta socialista é que uma sociedade socialista permitiria o pleno desenvolvimento das capacidades de todos. Nosso coletivismo se inspira na solidariedade para favorecer a autonomia dos indivíduos, não a sua anulação.

A aposta socialista não se deixa seduzir, tampouco, pelo mito de um progresso a qualquer preço. Assim como deve haver regulação social da riqueza, deve haver limites políticos na exploração da natureza. O perigo de um apocalipse ambiental provocado pelo aquecimento global sinaliza até onde pode ir a loucura da voracidade capitalista.

Reacionários defendem que o socialismo seria a tirania da chatice, da caretice, do tédio e, no limite, a destruição da liberdade. Para um reacionário, liberdade e igualdade são valores incompatíveis. Ou uma, ou outra. Porque o direito à liberdade seria o direito de lutar pelo enriquecimento, a propriedade privada, a herança. São entusiastas furiosos da ambição e da cobiça, são devorados pela fantasia da avidez: de sucesso, de fortuna, de glória, de poder. Estão convencidos que a luta pela igualdade social seria incompatível com a busca da felicidade pessoal.

Nós respondemos que a luta pela felicidade pessoal é justa. Mas deve haver limites. Ninguém pode ser feliz sozinho. Ambição sem limites degenera em ganância, em abuso, em transgressão sobre os direitos dos outros. Todos temos desejos e isso é legítimo. Não é admissível, contudo, que a felicidade de um seja feita ao custo do martírio de muitos. Não é aceitável que a liberdade incondicional de poucos legitime a tirania da maioria.

Sempre que pensamos na solução de um problema devemos considerar quem são os inimigos, e qual é a base social na qual podemos nos apoiar para confrontá-los. Se quisermos, portanto, seriamente, erradicá-la, teremos que lutar. Mas é mais do que claro que só é possível acabar com a pobreza, se derrotarmos o capitalismo. Essa luta só pode ser vitoriosa com a unidade dos trabalhadores. Eles parecem invisíveis, socialmente. Mas a eles pertence o futuro. Se quisermos, de verdade, merecer um futuro.

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