Antes e depois de Seattle. Emir Sader. Enero 2001

Faz  apenas  um  ano  que  se  realizaram  as manifestações  de  Seattle e no entanto mudou  tanto  o  clima  internacional,  que  é preciso  nos  darmos  conta  exatamente  de onde  estamos,  tanto  para  não  acreditar  que tudo  mudou,  quanto  para  percebermos  em que  altura estamos do caminho de superação do neoliberalismo.

Antes de Seattle

As  transformações  regressivas  ocorridas  no  mundo entre  a  crise  de  1973  e  Seattle  representam  os  pontos  de ascensão  e  consolidação  do  novo  liberalismo  no  mundo.

Aquele  momento  era  a  virada:  do  mais  profundo  ciclo, longo  e  expansivo,  da  história  do  capitalismo,  ao  ciclo recessivo,  do  qual  ainda  não  saiu.  De  alguma  forma  a reaparição e nova hegemonia liberal representa uma reação ao que se cristalizava naquele momento em escala mundial.

Por um lado, uma reação ideológica, que foi o primeiro passo  para  tudo  o  que  aconteceu  depois.  O  diagnóstico  de que  a  crise  que  havia  chegado  era  produto  da  regulação econômica, com todos seus elementos: força dos sindicatos, encarecimento  da  mão-de-obra,  excessiva  capacidade  de articulação de setores da periferia capitalista.

Esse diagnóstico  ensejou  a  ofensiva  ideológica,  que  mudou  de forma  rápida  e  radical  o  panorama  mundial,  a  partir  das fórmulas de desregulação econômica e todos os seusavatares  –privatização,  abertura  econômica  ao  mercado internacional, estreitamento das funções e ações do Estado–com a correspondente projeção do liberalismo, especialmente  financeiro e comercial, e das grandes corporações, como os sujeitos do processo econômico.

Combinando a recessão com a proposta de reacomodação das  condições

de acumulação –“terceirização”, reengenharia, flexibilização laboral, toyotismo–  se  produziu  uma  nova  correlação  de  forças entre as classes sociais, condição essencial do novo panorama  histórico,  que  teve  vigência  nas  duas  últimas décadas  do  século  XX.  O  capitalismo  se  recompôs,  num patamar  claramente  mais  baixo,  como  toda  saída  de  crise.

Mas  principalmente  com  um  novo  projeto  hegemônico, cristalizado  na  ideologia  neoliberal  e  nas  novas  condições de acumulação e de relação entre as classes, assim como do Estado  com  o  mercado  e  das  economias  nacionais  com  o mercado internacional.

O  triunfo  da ideologia liberal, nas condições do capitalismo do fim do século, privilegiou o crescimento dos países que mais rapidamente puderam impor a flexibilização  laboral  e  a  correspondente  superexploração dos  trabalhadores.  Elevaram  substancialmente  as  taxas  de exploração e de lucro, ao mesmo tempo em que acentuaram a fratura entre a alta e a baixa esfera do consumo,concentrando renda de maneira funcional ao proceso concentrador  de  acumulação  de  capital.  Essas  condições ganharam realidade de forma particularmente propícia nos EUA, depois que se recuperaram da crise do fordismo e se recompuseram para aproveitar as inovações da organização do processo  produtivo.

Isto é, mediante uma política econômica  dirigida  a  reconquistar  espaços  no  mercado internacional, através da desvalorização do dólar,aceleração das importações de mercadorias a preços baratos(particularmente da China), e atração de capitais, (particularmente  japoneses) para suprir seu gigantesco déficit comercial. Sua economia interna, enquanto isso, foi se dirigindo seletivamente para ramos de ponta  e, maciçamente, para o setor de serviços, espaço privilegiado da informalidade e do trabalho precário.

A Inglaterra  –com  Thatcher  secundando  a  Reagan–seguiu esses passos, assumindo-se como potência de segunda  categoria  em  termos  produtivos,  vendendo  sua mão-de-obra barateada pela ofensiva neoliberal, desindustrializando-se  (desapareceu  a industria automobilística  inglesa)  e  voltando  esforços  para  a  City londrina,  correlato  da  expansão  da  especulação  financeira internacional.

Os  outros  países  da  Europa,  assim  como  o  Japão, ficaram para trás, por trilhar mais lentamente esse caminho, devido a configurações de classe mais rígidas ou devido a maiores  dificuldades  para construir neoliberalismos de linha dura como o norte-americano e o inglêsespécies de processos de acumulação primitiva da hegemonía neoliberal.

Esses processos tiveram seu período de instalação, que supôs a dureza dos mecanismos de acumulação  primitiva, com ênfase especial em quebrar  a  resistência  do movimento  operário organizado.  As  greves  dos operários  do carvão na Inglaterra,  dos  trabalhadores  da  Fiat  na  Itália  e dos  controladores  aéreos nos EUA, derrotadas cada uma delas, tornaram-se símbolos da  vida  na  luta  de  classes  nesses  países  e  fizeram  soar  o alarme  de  que  a  nova  disposição  de  endurecimento  das classes  dominantes  dava resultados.

Essa  tarefa correspondeu  às  forças  e  governantes  com  visões  mais ortodoxas do liberalismo, em geral provenientes da direita tradicional,  agora  em versões mais “ideologizadas” eradicalizadas, assentadas no fundamentalismo de mercado.

Os  resultados  não  se  fizeram  esperar,  tanto  no  novo ciclo  expansivo  das  economias  dos  EUA e  da  Inglaterra–insuficientes no entanto para superar o ciclo longo recessivo geral do capitalismo– quanto no debilitamento da capacidade  de  luta  do  movimento  operário  organizado. 

A retomada  do  crescimento  econômico  se  deu  em  setores tradicionais, como a indústria automobilística norteamericana,  junto  com  o  desenvolvimento  de  novos  ramos de  ponta  –de  que  a  informática  se  tornou  o  símbolo.  E  a expansão  desmesurada  do  setor  de  serviços,  ao  lado  de aumento  da  disponibilidade  de  mão-de-obra  (seja  pelo desemprego,  resultante  dos  remanejamentos  no  proceso produtivo,  seja  pela  elevação  acentuada  dos  trabalhadores imigrantes), conforme a periferia capitalista entrou abertamente em recessão.

Instalou-se  uma  nova  correlação  de  forças  entre  as classes,  tanto  no  plano  geral  quanto  em  cada  país  em particular,  com  diferenças  de  menor  monta,  conforme  o capitalismo  logrou  estender  os  limites  do  mercado  através da desregulação, que impôs um novo ciclo e internacionalização do capital.

O mercado financiero comandou  essa  internacionalização,  mas  foi  acompanhado pela  intensificação dos intercâmbios entre as grandes corporações multinacionais no plano dos investimentos e da tecnologia,  assim  como  um  mercado  de  mão-de-obra,  nos limites do interesse dessas grandes corporações.

Desemprego  estrutural onde tinha havido pleno emprego;  informalização,  terceirização,  trabalho  precário, ao lado de política dura de enfrentamento com movimentos grevistas – foram os elos mais importantes dessa virada, ao lado da bem sucedida campanha ideológica de reindividualização,  acompanhada  da  extensão  do  consumismo  e  do  boom  editorial  da  reengenharia  e  da “auto-ajuda”. Quebrou-se o  consenso  favorável  às soluções  coletivas  dos problemas  da  sociedade, enquanto se abriam caminhos  seletivos  de  ascensão  nas  novas  formas  de organização da economia–com forte peso da informática  e  da  propaganda  em  torno  “nova  economia”–guiada pela informática e “sem crises”.

Baixa  acentuada do nível de sindicalização, forte diminuição  da  ocorrência  de  greves,  enfraquecimento  da capacidade reivindicativa dos sindicatos, preponderância da defesa  do  emprego  em  detrimento  da  melhoria  salarial  ou da  redução  da  jornada  de  trabalho  –em  suma,  defensiva aberta e ampla por parte do movimento sindical em praticamente todas as regiões do mundo.

A hegemonia do capital financeiro, promovida pela elevação da taxa de juros acima da taxa de lucros e pelos processos de desregulação, por sua vez, impôs novas formas de reprodução social favoráveis à acumulação especulativa, com reflexos negativos diretos sobre o processo produtivo, sobre os níveis de desenvolvimento econômico, sobre o nível de emprego, sobre a “financeirização” dos Estados e  das empresas e sobre a vida econômica e social no seu conjunto.

No  entanto,  as  maiores  transformações  regressivas  se deram  no  plano  ideológico,  de  forma  conexa  com  as modificações no processo de reprodução material da sociedade e de seus agentes sociais. Conforme  o capitalismo estende e completa seu processo de mercantilização  do  mundo  inteiro,  se  desenvolve  e  se arraiga  a ideologia individualista que corresponde às relações de mercado, em que o destino de cada um é obra de  cada  um,  acomodando-se  à  circunstância  que  tudo  se torna mercadoria, inclusive os seres humanos.

Esse processo sem precedentes por sua extensão e profundidade–porque  se  dá  correlatamente  com  o  enfraquecimento  das formas  de  construção  de  sujeitos  coletivos,  seja  no  plano organizativo, político e do próprio  conhecimento–resultando na  sobredeterminção de todas as relações sociais, incluídas a luta política e a ideológica. É como se o mundo  se  reconstituísse  a  partir  dos  indivíduos  como mônadas: o sonho utópico do liberalismo econômico.

Seattle

Seattle  acontece  como  uma  espécie  de  velha  toupeira que, de repente, depois de uma acumulação quase subterrânea  de  forças,  irrompe  à  superfície,  ao  mesmo tempo como resultado previsível de desdobramentos anteriores,  mas  também  como  expressão  surpreendente –pela forma, pelo lugar, pelo momento– dessas tendências.

Não  foi  surpreendente  que  Seattle  acontecesse,  pelo  mal-estar  acumulado  nas  duas  décadas  anteriores  que,  sem espaço  para  se  manifestar,  seja  pelo  debilitamento  das organizações que pudessem expressa-lo, seja pelo deslocamento  ideológico dos debates para temas financeiros ou outros, que conseguiram canalizar a atenção e  as  energias  do  espaço  público  e  discussão,  no  lugar  de outros,  que  subterraneamente  foram  buscando  os  espaços de  menor resistência para fazer-se presentes.

Foi surpreendente que tivesse demorado a fazê-lo e quefinalmente se tivesse dado na forma em que se deu.

Seattle foi uma convergência de múltiplas reivindicações, a ponto de que publicações da grandeimprensa tentaram reduzi-las a um mosaico desconexo de demandas, reunidas pelo descontentamento dos marginalizados pelos avanços da globalização, mas incoerentes entre si. Certamente os exemplos mais utilizados têm a ver com as contradições entre a defesa dos empregos dos trabalhadores norte-americanos pelos sindicatos daquele país –que  explicitamente se contradizem com o deslocamento de capitais para países da periferia capitalista, de que o México, a Índia, a Indonésia e a China são apenasalguns grandes exemplos, para superexplorar mão-de-obra dezenas de vezes mais barata que a dos EUA– e a luta contra o desemprego nesses países.

Dentre  suas maiores conquistas, as manifestações desde  Seattle conseguiram,  por  um  lado,  quebrar  a  apatía política,  um  certo  conformismo  sobre  a  onipotência  da tecnocracia internacional para decidir sobre os destinos da humanidade.

A idéia de que se pode pelo menos questionar e  até  mesmo  bloquear  a  capacidade  de  decisão  dessa tecnocracia  e  de  seus  organismos.  Essas  manifestações serviram igualmente para apontar os adversários centrais da diversidade  de  reivindicações  –a  OMC,  o  FMI,  o  Banco Mundial– como representantes da ordem vigente no mundo atualmente.

Por  outro  lado,  se  conseguiu  deslocar  os  temas  em debate, da alternativa entre maior ou menor liberalização do comércio para as conseqüências sociais do modeloeconômico vigente e para a necessidade da sua substituição.

Essa  mudança  fez  com  que  as  próprias  reuniões  daqueles organismos  tivessem  que  se  debruçar  sobre  essa  nova agenda,  embora superficialmente,  deixando  de  seguir  sua própria agenda.

Ao nível nacional, as manifestações permitem recuperar  dinamismo  e  capacidade  de  atração  em  varios países,  a  começar  pelos  europeus,  onde  a  esquerda  havia chegado ao nível mais baixo de sua história, e nos Estados Unidos.  Elas  permitiram,  ao  mesmo  tempo,  recuperar  a dimensão internacional da luta atual, questionando as versões, como a de Samuel  Huntington, de que oquestionamento da ordem mundial atual se fazia apenas por setores  de  fundamentalismo  nacionalista  e  religioso.  Umnovo  elo  de  solidariedade  começa  a  surgir  e  permitirvislumbrar o potencial de um novo projeto hegemônico.

Essa  mudança  do  clima  internacional  representa  o avanço  mais  significativo  a  partir  de  Seattle.  No  entanto, essa  força  social  e  ideológica  acumulada  ainda  não  se traduziu em força política, que permita começar concretamente  a  frear,  reverter  e  modificar  a  hegemonía real do neoliberalismo, seja nos fluxos económicos mundiais, seja na ideologia cotidiana da grande maioria da população  mundial.  Esta  fraqueza  se  revela,  efetivamente, na  ausência  ainda  de  governos  de  países  de  peso  mundial que  se oponham diretamente ao discurso e à prática neoliberal  e  comecem  a  construir  políticas  nacionais  e  um bloco de forças internacional que comece a pôr em prática uma ordem mundial qualitativamente diferente.

Isto só pode se dar quando se obtiver vitórias ao nível nacional, que é o espaço em que necessariamente se dão as lutas  políticas,  onde  é  possível diretamente  começar  a romper com a cadeia de imposição da hegemonía neoliberal. Nesse sentido se percebe que, embora os setores que se mobilizaram a partir de Seattle sejam muito ativos, são  ainda  minoritários,  agregando  setores  de  partidos  ou partidos  menores que ainda não lograram, porém, se constituir em forças hegemônicas nacionalmente.

Se essas forças têm que conseguir vitórias nacionalmente, ao mesmo tempo a concretização de políticas de ruptura e superação da atual ordem económica só  podem  ser  dar  internacionalmenteDaí  a  necessária articulação  entre  os  dois  planos,  sem  o  que  os  avanços internacionais não conseguirão desembocar em força política ou esta, conseguida no plano interno, ficará bloqueada para pôr em prática políticas concretas de negação e superação dos marcos neoliberais.

Depois de Seattle

Depois  de  Seattle,  o  movimento  de  questionamento  e superação  do  neoliberalismo  se  encontra  em  fase  de,  ao mesmo tempo, ampliação dos setores sociais mobilizados e de formualação de plataformas, políticas e estratégias concretas de ação. O Fórum Social Mundial de Porto Alegre será o primeiro momento de reunião do maior leque possível  das  forças  sociais  mobilizadas  para  buscar  eixos centrais de uma hegemonia alternativa.

Essa  busca  tem  no  questionamento  da  mais  extensa mercantilização  do  mundo,  realizada  pelo  capitalismo  em sua  fase  neoliberal,  seu  eixo  central  de  articulação,  que unifica tanto a sindicalistas, quanto a ecologistas, feministas  e  todo  o  conjunto  de  forças  que  expressam  o mal-estar da virada do século contra o domínio do capital.

A formulação  de  um  projeto  de  sociedade  centrado  no direito ao trabalho, no atendimento às necessidades básicas do conjunto da humanidade, na combinação entre a liberdade individual e a ação coletiva, entre a representação plural do ponto de vista social, político e cultural em todas as formas de exercício de poder, na solidariedade internacional  –pode  apontar  para  a  formulação  de  um projeto de reorganização da vida da humanidade em bases cooperativas, solidárias, humanistas.

Isso  requer,  antes  de  tudo,  um  diagnóstico  claro  a respeito  da  natureza  e  das  relações  de  poder  atualmente existentes  no  mundo,  para  deduzir  as  forças  com  que  se pode  contar  na  luta,  assim  como  para  buscar  as  alianças necessárias e, especialmente, para ter consciência da força do inimigo e dos obstáculos a enfrentar. Qualquer avaliação que subestime o tamanho do retrocesso na relação de forças mundial  e,  em  particular,  o  abismo  introduzido  entre  o destino dos países centrais do capitalismo e os da periferia, pode cair em visões simplistas e idealizadas dos caminosa trilhar para a quebra da hegemonia neoliberal e a construção de uma nova ordem mundial.

Nesse  sentido, os avanços desde Seattle são fundamentais por colocar elos de novas formas não apenas de solidariedade, mas principalmente de  articulação de interesses econômicos, sociais, culturais e políticos concretos que recomponham uma força internacional à altura de se enfrentar ao bloco de forças dominantes hoje no mundo.

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