Faz apenas um ano que se realizaram as manifestações de Seattle e no entanto mudou tanto o clima internacional, que é preciso nos darmos conta exatamente de onde estamos, tanto para não acreditar que tudo mudou, quanto para percebermos em que altura estamos do caminho de superação do neoliberalismo.
Antes de Seattle
As transformações regressivas ocorridas no mundo entre a crise de 1973 e Seattle representam os pontos de ascensão e consolidação do novo liberalismo no mundo.
Aquele momento era a virada: do mais profundo ciclo, longo e expansivo, da história do capitalismo, ao ciclo recessivo, do qual ainda não saiu. De alguma forma a reaparição e nova hegemonia liberal representa uma reação ao que se cristalizava naquele momento em escala mundial.
Por um lado, uma reação ideológica, que foi o primeiro passo para tudo o que aconteceu depois. O diagnóstico de que a crise que havia chegado era produto da regulação econômica, com todos seus elementos: força dos sindicatos, encarecimento da mão-de-obra, excessiva capacidade de articulação de setores da periferia capitalista.
Esse diagnóstico ensejou a ofensiva ideológica, que mudou de forma rápida e radical o panorama mundial, a partir das fórmulas de desregulação econômica e todos os seusavatares –privatização, abertura econômica ao mercado internacional, estreitamento das funções e ações do Estado–com a correspondente projeção do liberalismo, especialmente financeiro e comercial, e das grandes corporações, como os sujeitos do processo econômico.
Combinando a recessão com a proposta de reacomodação das condições
de acumulação –“terceirização”, reengenharia, flexibilização laboral, toyotismo– se produziu uma nova correlação de forças entre as classes sociais, condição essencial do novo panorama histórico, que teve vigência nas duas últimas décadas do século XX. O capitalismo se recompôs, num patamar claramente mais baixo, como toda saída de crise.
Mas principalmente com um novo projeto hegemônico, cristalizado na ideologia neoliberal e nas novas condições de acumulação e de relação entre as classes, assim como do Estado com o mercado e das economias nacionais com o mercado internacional.
O triunfo da ideologia liberal, nas condições do capitalismo do fim do século, privilegiou o crescimento dos países que mais rapidamente puderam impor a flexibilização laboral e a correspondente superexploração dos trabalhadores. Elevaram substancialmente as taxas de exploração e de lucro, ao mesmo tempo em que acentuaram a fratura entre a alta e a baixa esfera do consumo,concentrando renda de maneira funcional ao proceso concentrador de acumulação de capital. Essas condições ganharam realidade de forma particularmente propícia nos EUA, depois que se recuperaram da crise do fordismo e se recompuseram para aproveitar as inovações da organização do processo produtivo.
Isto é, mediante uma política econômica dirigida a reconquistar espaços no mercado internacional, através da desvalorização do dólar,aceleração das importações de mercadorias a preços baratos(particularmente da China), e atração de capitais, (particularmente japoneses) para suprir seu gigantesco déficit comercial. Sua economia interna, enquanto isso, foi se dirigindo seletivamente para ramos de ponta e, maciçamente, para o setor de serviços, espaço privilegiado da informalidade e do trabalho precário.
A Inglaterra –com Thatcher secundando a Reagan–seguiu esses passos, assumindo-se como potência de segunda categoria em termos produtivos, vendendo sua mão-de-obra barateada pela ofensiva neoliberal, desindustrializando-se (desapareceu a industria automobilística inglesa) e voltando esforços para a City londrina, correlato da expansão da especulação financeira internacional.
Os outros países da Europa, assim como o Japão, ficaram para trás, por trilhar mais lentamente esse caminho, devido a configurações de classe mais rígidas ou devido a maiores dificuldades para construir neoliberalismos de linha dura como o norte-americano e o inglês –espécies de processos de acumulação primitiva da hegemonía neoliberal.
Esses processos tiveram seu período de instalação, que supôs a dureza dos mecanismos de acumulação primitiva, com ênfase especial em quebrar a resistência do movimento operário organizado. As greves dos operários do carvão na Inglaterra, dos trabalhadores da Fiat na Itália e dos controladores aéreos nos EUA, derrotadas cada uma delas, tornaram-se símbolos da vida na luta de classes nesses países e fizeram soar o alarme de que a nova disposição de endurecimento das classes dominantes dava resultados.
Essa tarefa correspondeu às forças e governantes com visões mais ortodoxas do liberalismo, em geral provenientes da direita tradicional, agora em versões mais “ideologizadas” eradicalizadas, assentadas no fundamentalismo de mercado.
Os resultados não se fizeram esperar, tanto no novo ciclo expansivo das economias dos EUA e da Inglaterra–insuficientes no entanto para superar o ciclo longo recessivo geral do capitalismo– quanto no debilitamento da capacidade de luta do movimento operário organizado.
A retomada do crescimento econômico se deu em setores tradicionais, como a indústria automobilística norteamericana, junto com o desenvolvimento de novos ramos de ponta –de que a informática se tornou o símbolo. E a expansão desmesurada do setor de serviços, ao lado de aumento da disponibilidade de mão-de-obra (seja pelo desemprego, resultante dos remanejamentos no proceso produtivo, seja pela elevação acentuada dos trabalhadores imigrantes), conforme a periferia capitalista entrou abertamente em recessão.
Instalou-se uma nova correlação de forças entre as classes, tanto no plano geral quanto em cada país em particular, com diferenças de menor monta, conforme o capitalismo logrou estender os limites do mercado através da desregulação, que impôs um novo ciclo e internacionalização do capital.
O mercado financiero comandou essa internacionalização, mas foi acompanhado pela intensificação dos intercâmbios entre as grandes corporações multinacionais no plano dos investimentos e da tecnologia, assim como um mercado de mão-de-obra, nos limites do interesse dessas grandes corporações.
Desemprego estrutural onde tinha havido pleno emprego; informalização, terceirização, trabalho precário, ao lado de política dura de enfrentamento com movimentos grevistas – foram os elos mais importantes dessa virada, ao lado da bem sucedida campanha ideológica de reindividualização, acompanhada da extensão do consumismo e do boom editorial da reengenharia e da “auto-ajuda”. Quebrou-se o consenso favorável às soluções coletivas dos problemas da sociedade, enquanto se abriam caminhos seletivos de ascensão nas novas formas de organização da economia–com forte peso da informática e da propaganda em torno “nova economia”–guiada pela informática e “sem crises”.
Baixa acentuada do nível de sindicalização, forte diminuição da ocorrência de greves, enfraquecimento da capacidade reivindicativa dos sindicatos, preponderância da defesa do emprego em detrimento da melhoria salarial ou da redução da jornada de trabalho –em suma, defensiva aberta e ampla por parte do movimento sindical em praticamente todas as regiões do mundo.
A hegemonia do capital financeiro, promovida pela elevação da taxa de juros acima da taxa de lucros e pelos processos de desregulação, por sua vez, impôs novas formas de reprodução social favoráveis à acumulação especulativa, com reflexos negativos diretos sobre o processo produtivo, sobre os níveis de desenvolvimento econômico, sobre o nível de emprego, sobre a “financeirização” dos Estados e das empresas e sobre a vida econômica e social no seu conjunto.
No entanto, as maiores transformações regressivas se deram no plano ideológico, de forma conexa com as modificações no processo de reprodução material da sociedade e de seus agentes sociais. Conforme o capitalismo estende e completa seu processo de mercantilização do mundo inteiro, se desenvolve e se arraiga a ideologia individualista que corresponde às relações de mercado, em que o destino de cada um é obra de cada um, acomodando-se à circunstância que tudo se torna mercadoria, inclusive os seres humanos.
Esse processo sem precedentes por sua extensão e profundidade–porque se dá correlatamente com o enfraquecimento das formas de construção de sujeitos coletivos, seja no plano organizativo, político e do próprio conhecimento–resultando na sobredeterminção de todas as relações sociais, incluídas a luta política e a ideológica. É como se o mundo se reconstituísse a partir dos indivíduos como mônadas: o sonho utópico do liberalismo econômico.
Seattle
Seattle acontece como uma espécie de velha toupeira que, de repente, depois de uma acumulação quase subterrânea de forças, irrompe à superfície, ao mesmo tempo como resultado previsível de desdobramentos anteriores, mas também como expressão surpreendente –pela forma, pelo lugar, pelo momento– dessas tendências.
Não foi surpreendente que Seattle acontecesse, pelo mal-estar acumulado nas duas décadas anteriores que, sem espaço para se manifestar, seja pelo debilitamento das organizações que pudessem expressa-lo, seja pelo deslocamento ideológico dos debates para temas financeiros ou outros, que conseguiram canalizar a atenção e as energias do espaço público e discussão, no lugar de outros, que subterraneamente foram buscando os espaços de menor resistência para fazer-se presentes.
Foi surpreendente que tivesse demorado a fazê-lo e quefinalmente se tivesse dado na forma em que se deu.
Seattle foi uma convergência de múltiplas reivindicações, a ponto de que publicações da grandeimprensa tentaram reduzi-las a um mosaico desconexo de demandas, reunidas pelo descontentamento dos marginalizados pelos avanços da globalização, mas incoerentes entre si. Certamente os exemplos mais utilizados têm a ver com as contradições entre a defesa dos empregos dos trabalhadores norte-americanos pelos sindicatos daquele país –que explicitamente se contradizem com o deslocamento de capitais para países da periferia capitalista, de que o México, a Índia, a Indonésia e a China são apenasalguns grandes exemplos, para superexplorar mão-de-obra dezenas de vezes mais barata que a dos EUA– e a luta contra o desemprego nesses países.
Dentre suas maiores conquistas, as manifestações desde Seattle conseguiram, por um lado, quebrar a apatía política, um certo conformismo sobre a onipotência da tecnocracia internacional para decidir sobre os destinos da humanidade.
A idéia de que se pode pelo menos questionar e até mesmo bloquear a capacidade de decisão dessa tecnocracia e de seus organismos. Essas manifestações serviram igualmente para apontar os adversários centrais da diversidade de reivindicações –a OMC, o FMI, o Banco Mundial– como representantes da ordem vigente no mundo atualmente.
Por outro lado, se conseguiu deslocar os temas em debate, da alternativa entre maior ou menor liberalização do comércio para as conseqüências sociais do modeloeconômico vigente e para a necessidade da sua substituição.
Essa mudança fez com que as próprias reuniões daqueles organismos tivessem que se debruçar sobre essa nova agenda, embora superficialmente, deixando de seguir sua própria agenda.
Ao nível nacional, as manifestações permitem recuperar dinamismo e capacidade de atração em varios países, a começar pelos europeus, onde a esquerda havia chegado ao nível mais baixo de sua história, e nos Estados Unidos. Elas permitiram, ao mesmo tempo, recuperar a dimensão internacional da luta atual, questionando as versões, como a de Samuel Huntington, de que oquestionamento da ordem mundial atual se fazia apenas por setores de fundamentalismo nacionalista e religioso. Umnovo elo de solidariedade começa a surgir e permitirvislumbrar o potencial de um novo projeto hegemônico.
Essa mudança do clima internacional representa o avanço mais significativo a partir de Seattle. No entanto, essa força social e ideológica acumulada ainda não se traduziu em força política, que permita começar concretamente a frear, reverter e modificar a hegemonía real do neoliberalismo, seja nos fluxos económicos mundiais, seja na ideologia cotidiana da grande maioria da população mundial. Esta fraqueza se revela, efetivamente, na ausência ainda de governos de países de peso mundial que se oponham diretamente ao discurso e à prática neoliberal e comecem a construir políticas nacionais e um bloco de forças internacional que comece a pôr em prática uma ordem mundial qualitativamente diferente.
Isto só pode se dar quando se obtiver vitórias ao nível nacional, que é o espaço em que necessariamente se dão as lutas políticas, onde é possível diretamente começar a romper com a cadeia de imposição da hegemonía neoliberal. Nesse sentido se percebe que, embora os setores que se mobilizaram a partir de Seattle sejam muito ativos, são ainda minoritários, agregando setores de partidos ou partidos menores que ainda não lograram, porém, se constituir em forças hegemônicas nacionalmente.
Se essas forças têm que conseguir vitórias nacionalmente, ao mesmo tempo a concretização de políticas de ruptura e superação da atual ordem económica só podem ser dar internacionalmente. Daí a necessária articulação entre os dois planos, sem o que os avanços internacionais não conseguirão desembocar em força política ou esta, conseguida no plano interno, ficará bloqueada para pôr em prática políticas concretas de negação e superação dos marcos neoliberais.
Depois de Seattle
Depois de Seattle, o movimento de questionamento e superação do neoliberalismo se encontra em fase de, ao mesmo tempo, ampliação dos setores sociais mobilizados e de formualação de plataformas, políticas e estratégias concretas de ação. O Fórum Social Mundial de Porto Alegre será o primeiro momento de reunião do maior leque possível das forças sociais mobilizadas para buscar eixos centrais de uma hegemonia alternativa.
Essa busca tem no questionamento da mais extensa mercantilização do mundo, realizada pelo capitalismo em sua fase neoliberal, seu eixo central de articulação, que unifica tanto a sindicalistas, quanto a ecologistas, feministas e todo o conjunto de forças que expressam o mal-estar da virada do século contra o domínio do capital.
A formulação de um projeto de sociedade centrado no direito ao trabalho, no atendimento às necessidades básicas do conjunto da humanidade, na combinação entre a liberdade individual e a ação coletiva, entre a representação plural do ponto de vista social, político e cultural em todas as formas de exercício de poder, na solidariedade internacional –pode apontar para a formulação de um projeto de reorganização da vida da humanidade em bases cooperativas, solidárias, humanistas.
Isso requer, antes de tudo, um diagnóstico claro a respeito da natureza e das relações de poder atualmente existentes no mundo, para deduzir as forças com que se pode contar na luta, assim como para buscar as alianças necessárias e, especialmente, para ter consciência da força do inimigo e dos obstáculos a enfrentar. Qualquer avaliação que subestime o tamanho do retrocesso na relação de forças mundial e, em particular, o abismo introduzido entre o destino dos países centrais do capitalismo e os da periferia, pode cair em visões simplistas e idealizadas dos caminosa trilhar para a quebra da hegemonia neoliberal e a construção de uma nova ordem mundial.
Nesse sentido, os avanços desde Seattle são fundamentais por colocar elos de novas formas não apenas de solidariedade, mas principalmente de articulação de interesses econômicos, sociais, culturais e políticos concretos que recomponham uma força internacional à altura de se enfrentar ao bloco de forças dominantes hoje no mundo.